Chega a sexta, o sábado, o domingo, a segunda, e não acontece nada... Além do rosário de queixas e de lamentos da turba, não acontece nada... Cada um, palitando os dentes, permanece sentado sobre seus centavos, seus rabos, suas mentiras, suas crenças, seus álibis e seus delírios, na vã espera por Godot...
Na padaria da esquina, nesta manhã mais seca que o deserto de Merzouga, até o Mendigo K olhava para o nada, parecendo estar navegando no éter.
Depois, ao mesmo tempo em que os sinos da igreja mais próxima badalavam e sentavam-se ao seu lado outros indigentes, ouvi que, num tom de blasfêmia, lançou esta pérola no ar:
Sempre que ouço um sino penso do padreco Vieira. Aquele que, estando em Roma, enquanto os portugueses dizimavam os índios por aqui, caguetou: "não só no Maranhão, mas na colônia inteira, a fé está degenerando em loucura..."
Todos riram e um deles, chegado recente do Alto Xingú, em tom sóbrio, completou: Já que estamos falando de tempos pretéritos, eu, que sinto arrepios quando ouço os burocratas falando em 'salvar' e em 'catequizar' meus parentes, penso no desabafo de um dos inúmeros matadores daqueles tempos, um tal Duquay-Troin: "sob o pretexto de instruir a América, degolamos ali milhões de homens, na chaga mais cruel que já foi feita ao gênero humano..."
A velhinha armênia que apareceu casualmente por lá, fantasiada de bruxa, vinda de um cosplay, ao ouvir aquela declaração, resmungou, num italiano tropical: Quegli invasori erano criminali e senza valore...
E em seguida completou: "Os perros, como os portugueses eram tratados pelos nativos, chegaram a ser malquistos até entre crianças, tendo cabido a um curumim de cinco anos de idade assassinar, em Porto-Seguro, o donatário Pereira Coutinho, opressor dos nativos e mandante de morte de um dos irmãos do pequeno assassino..."
Ninguém mais abriu a boca e a frase: quegli invasori erano criminali e senza valore..., parecia ter ficado suspensa no ar.
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