segunda-feira, 17 de abril de 2023

E dentro da mala havia apenas um singelo cachimbo com vestígios de crack...

 


Dando continuidade ao processo de imbecilização coletiva e de enlouquecimento social, moradores de um bloco ali do lado norte da cidade, ao se depararem com uma maleta abandonada por um mendigo, pensaram logo num ato terrorista: BOMBA! E chamaram logo a policia. Por detrás das persianas e das vidraças já foram aparecendo homens, mulheres e crianças com os olhos arregalados. E, como era domingo, muitos ainda estavam com os trajes e perfumes patéticos de ir à missa e até com o rosário amarrado ao redor das carótidas. Um artefato explosivo! Bomba! Terrorismo! Comunismo! Seriam os bolsonaristas? Ou os lulistas? É o Lula voltando da China!!!!!! Não, é  o apocalipse. Por coincidência, recém haviam ouvido o padre da quadra, no meio do sermão que vem fazendo há 40 anos, falar sobre o Apocalipse e sobre a Prostituta da Babilônia... Para o reverendo, que gosta de amedrontar suas beatas com a anedota de que todo paraíso tem uma serpente, perto do que ouve no confessionário, dos pesadelos que tem tido e perto das noticias de jornal, as Dez Pragas do Egito não foram nada... 

Uma bomba!

Meu Deus!

Um sectariozinho político resmunga para seu comparsa: e se for o primeiro ato do retalhamento dos EEUU, por causa da história do dólar?...   

Tenha cuidado seu guarda! Gritou da varanda uma balzaquiana vestida de branco, mulher que, na quadra, todos  conhecem por Madre Tereza de Calcutá... 

A polícia, mais mala do que a mala, logo identificou que a maleta tinha as marcas da indigência, mas, como sabia que todo mundo estava filmando e para justificar o contracheque, ia seguindo com rigor os protocolos aprendidos, parte da polícia americana e parte  da polícia de Israel... E a tal mala, imersa em sua sujeira, em seu anonimato e em sua degradação, parecia observar com sarcasmo os movimentos da PMDF e do CBMDF... as sirenes e toda aquela insana agitação. Pensei: um sujeito numa parada de ônibus, num domingo de manhã, com uma maletas destas nas mãos é a imagem perfeita de um excluído do mundo... Algumas pessoas se consolam e se abraçam, deixando evidente que o mundo é um grande orfanato, com uns adotando os outros... 

E as mocinhas da mídia, sob o olhar tirano e delirante do chefe de redação, iam entrevistando os porteiros mais estressados e os moradores mais apavorados e anotando tudo, vírgula por vírgula. Recebiam chamadas no celular, faziam fotos, jogavam as mechas avermelhadas para o lado. Uma delas, curiosamente, também estava com trajes de missa... (mas, o jornalismo não é laico?) A polícia deu ordens para evacuar um mercadinho das redondezas. Evacuar? Alguém entendeu evacuar no mercado. Silêncio... tensão... Senhor, tenha piedade! Cuidado seu guarda!... O guarda mais heróico fica de cócoras, faz girar o zip e levanta a tampa da mala com o pudor de quem levanta a tampa de um féretro... Silêncio. Em seu interior, apenas um cachimbo artesanal desses singelos e miseráveis de fumar crack, com a parte superior já queimada e degradada e uma cueca já sem elástico... Caralho!

Um velhinho magricela, que deve estar beirando aos noventa, (que já votou no Jânio; na ditadura; no Sarney; no Collor; no Lula; no Fernando Henrique; na Dilma  etc, etc,) olha tudo, sem óculos, com um cinismo indisfarçável no olhar, como se dissesse para si mesmo: ah!, quantas vezes já vi esse circo! Nunca deu em nada. Não passa de uma insistência e uma teimosia em dar utilidade ao inútil...

Nada de bomba! Nem de artefatos atômicos ou biológicos... Ufa! As donas de casa suspiram...  mas suas pupilas ainda estão repletas de medo. Tudo está dominado pela dialética do medo! Da hipocondria! da babaquice! Que momento decadente!

Deus seja louvado! 

Aleluia! 

Hosana! 

Paradoxalmente, saem das janelas mais ou menos frustradas. 

Ah, bem que poderia ter sido uma bomba... 

Ah! se fosse uma bomba! 

A tal Madre Teresa tem certeza de que se tratou de um milagre. Sim, com certeza, o diabo havia colocado uma bomba dentro daquela mala, mas a mão de Deus a retirou a tempo...

Uma das repórteres, peruana, nascida na Cordilheira dos Andes e que vive clandestinamente no país, confessava assustada a uma colega vinda de Goiânia, nascida no alto da Cordilheira dos Pirineus, que está relendo A psicologia do medo, de Domingos Barreira... e recita, com ares de pastora hipocondríaca: "Grande nau, grande tormenta... Quem em mais alto nada, mais presto se afunda..."

Como era domingo, no outro lado do lago, sem nenhuma razão e sem nenhum sentido, os sinos badalavam...

Y así, en medio de este rebaño derrochador, vamos perdiendo la vida.



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