sábado, 25 de dezembro de 2021

Mas, afinal, você tem fome de quê? A gente não quer só comida...

"A massa é como limalha que se aglomera em redor de qualquer imã. 
É preferível ser imã a ser migalha..."(P.)
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Neste sábado ensolarado com os ramos das sucupiras ainda expurgando os chuviscos da noite e com a população ressaqueada de tanto peru e de tanto porco assado, os mendigos se reuniram logo cedo na padaria do velho imigrante, vindo da Cataluña há uns 50 anos. Um gato espiava do alto de uma janela... Havia restos de bolos e de farinhas sobre as mesas e uma serpentina de luzinhas chinesas ainda piscando junto à vidraça, para lembrar que Jesus, nascido e assassinado lá da Faixa de Gaza, havia renascido. Os mendigos riam dessa ficção, dessa vaidade e desse bric-à-brac infanto-juvenil entre comerciantes e velhacos. A mulher do padeiro e mais duas estagiárias, surgiram inesperadamente, todas com aventais brancos e luvas, trazendo grandes sacos de alimentos e os colocaram nos braços dos mendigos, desejando-lhes um feliz natal. Eles, surpresos,  por uma questão de 'ética primitiva', os aceitaram, mas não deixaram de cantarolar aquela música dos Titãs: "A gente não quer só comida..." A  padeira e as estagiárias riram, sem entender muito bem a malícia da coisa... e voltaram para diante de seus fornos... O Mendigo K examinou superficialmente os pacotes e resmungou: essa gente quer nos engordar a todo custo! Julgam nossos estômagos e nossa fome pelo estômago e pela fome deles... como se fossemos porcos vorazes! De tão estupidificados pela obsessão de 'prosperidade', não entendem que o que queremos, não é sair da miséria, mas tirar a miséria de nós... Nossos barracos estão lotados de sacos de comida. Cada dia aparece por lá  uma velha paroquiana na fase depressiva; um apresentador de televisão na fase maníaca; um presidente de partido; um vigário; um pai de santo e outros farsantes, todos obesos, com quilos e mais quilos de macarrão, óleo, biscoitos, arroz, feijão, margarina, leite e acúcar... como se fossemos um bando de trituradores. E não pense que essa filantropia é por humanismo, é por culpa. (E, pior, não se trata de culpa social, mas de culpa transcendental!) Puro teatro! Encenação mística! Acreditam que um Ser Superior os está patrulhando e registrando esse gesto de caridade para com os fodidos do mundo... E que os cinco quilos de feijão fradinho dessa trapaça os poupará das labaredas do inferno... Bazzo, preste atenção como o mundo é regido por uma legião de farsantes... De todas as classes, cores, gêneros e categorias...

Farsantes que amanhã, voltarão a colocar novamente em funcionamento suas máquinas de exploração, a exigir os 10% do dízimo e a jogar os cachorros e a policia contra nossas mulheres e filhos... Depois de tanto tempo roubando e explorando, aproveitam essas oportunidades para fazer demagogia com nosso exílio e com nossa miséria! Se pelo menos nos trouxessem papel higiênico, cachaça e munição!!! De vez em quando encontramos no meio de todas aqueles pacotes, latas e pasto, pequenos escapulários, patuás, propaganda política e até páginas de uma Bíblia que foi impressa no Mosteiro dos Jeronymos. Ora, somos mendigos, mas não somos porcos famintos! E nem porcos chauvinistas! Nossa fome não é só de comida e nem só de ficções espirituais... 

Com um gesto de desprezo por aqueles sacos fez coro com a mendigada toda: VOCÊ TEM FOME DE QUÊ? A gente não quer só comida... A gente quer diversão e arte! A gente quer uma saída para qualquer parte e prazer para aliviar a dor... A gente não quer só comida... a gente quer fósforos e isqueiros para tocar fogo em toda essa merda..." 

O velho catalão, com os olhos de usura e de malignidade, por detrás do balcão, os olhava com uma fúria mal contida...

 


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