sábado, 11 de dezembro de 2021

Sob a vigilância das máscaras...




E então, percebendo que o homem era, por natureza, canalha, farsante e mau caráter, ensinou-lhe como construir máscaras para si e para seus asseclas. E foi assim, que, sem saber, esse cinico demiurgo acabou por instituir os primeiros alicerces da moral, do parlamento e da hipocrisia...

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De vez em quando, de saco cheio dessa clausura estúpida, profundamente decepcionado com o tal Progresso da Ciência, quando um vírus de merda e invisível, coloca o planeta de joelhos e congestiona os cemitérios... e com a pia, todas as manhãs, cheia de pratos, frigideiras, copos e panelas... passo em revista as centenas de máscaras que, desde o alto das paredes de minha casa, me observam e percebo que, nesta manhã de sábado, parecem provocar-me: e aí, seu babaca? Vai ficar nessa mediocridade e lavando panelas até quando? Virou um macho-doméstico para sempre? Olha o rodo! Olha a vassoura! Olha os chinelos! Não esqueça de ensaboar bem as patas e de passar álcool gel no rabo! E ao fazer a barba, de usar água morna como nossos bisavós... E não coloque os pés fora de casa sem essa burca... E não esqueça o Band-Aid no calcanhar direito! Olhe a China! Olhe a Inglaterra! Olhe os EEUU! Olhe a puta que te pariu! Olhe a nova cepa! O mundo está cheio de cepas... Cada sujeito é uma cepa ambulante! Olhe a vacina! Se não fossem as vacinas ao longo da história, nem estaríamos aqui. Lembra da Pólio? Da tuberculose? Da gripe? Do sarampo? Da varicela? Da Febre Amarela? Do tifo? Da Hepatite? Do Tétano? Da Meningite? Da Caxumba? Da Rubéola? Da Coqueluche??? Sem elas o mundo seria uma enfermaria bem pior e bem mais diversificada do que já é!  Olhe o natal! Olhe o Ano Novo! Sem fogos de artifício, o que será das fábricas clandestinas de explosivos e do Natal e do Ano Novo!? Como é que o rebanho vai se divertir se as lojinhas de 1,99 estiverem fechadas? E os comerciantes? Como é que vão ficar os comerciantes? Como é que essas hienas vão sobreviver? Olhe o papai Noel fantasiado de Coca Cola e pendurado nas soleira das janelas! Olhe os mendigos bêbados e em farrapos nos semáforos! Olhe as crianças sentando entre as pernas do Papai Noel nos shoppings sob os olhares quase equinos das mamães... Olhe a manjedoura e as vacas! E as luzinhas de Wuhan piscando! E a musiquinha terrível e reacionária da Noite Feliz! Olhe o João de Barro que, por distração, montou seu iglu ao lado do poleiro de um carcará! E os amigos ocultos? E a missa do galo? Olhem o Galo da Meia noite! Para quem os galos cantam, afinal? E as declarações de amor e de felicidades despachadas por Whatsapp? E as manchetes dos jornais, nem um pouco laicas! E o populacho refratário a qualquer chispa de razão, mugindo! E o pisca-pisca dos celulares! E os braços dos presos para fora das grades das penitenciarias, clamando por um Habeas corpus... por um indulto, por uma saidinha, por uma visita íntima... ou por um Feliz Ano Novo! Feliz Natal! Olhe os governadores queimando pólvora de graça para anestesiar os pagadores de impostos e de propinas! Olhem o Papa, saudoso dos tangos argentinos, como um papagaio, voltando a falar em URBI et ORBI... Olhem os iates deslizando pelo lago quase encantado, lá pela meia noite, com uma menina febril, na proa, dançando a dança do ventre sob o clarão de uma lua esplendorosa, cínica e indiferente... Ouçam o estouro da quinta Veuve Clicquot e o tilintar das taças vindas da Bulgária... Ao fundo do firmamento, por trás dos tentáculos da burocracia, segundo a velhinha do lenço de seda amarela, uma mistura de manchas dá a impressão de ser um imenso retábulo pagão! Ah, - apesar da sociedade ser uma estufa para o cultivo dessa planta venenosa conhecida por  hipocrisia -, como somos felizes! Pelo menos nestes dias! Graças a Deus, estamos vivos! Não estamos entre os 600 e tantos mil que foram para o país sem retorno! Mas... Mas... Quem sabe até quando! O que virá no amanhã? 

De tão realizados e esperançosos, desta vez vamos "cumprir a promessa"e o regime de emagrecimento no primeiro dia de 2002 e nos preparar para reeleger o Bolsonaro ou para reeleger o Lula! Ah! como somos democratas! E livres! E racionais! Viva o livre arbítrio! Os canalhas se sucedem no poder há 1 século, enquanto os evangélicos e os católicos cada um atrás de suas máscaras e de suas ficções, disputam descaradamente o dízimo estatal & clandestino... Sim, mas tudo isso é normal! Faz parte do folclore que propunha Platão. É a República! Viva a turba refratária a tudo o que tem uma fagulha de razão e que marcha de cabeça baixa... e Deus acima, abaixo e ao lado de tudo e de todos... surdo, mudo e cego...

A primeira que ouvi fazendo-me esta provocação, destrocei com uma espécie de espada que comprei numa feira do Azerbaijão. A segunda, atirei pela janela... E as outras, mais cuidadosas, continuavam me olhando com ironia... E com quê olhares! Resolvi observá-las também. Afinal, os olhos... são os olhos... Não são a expressão da alma, como diziam nossos antepassados? E nossa convivência não é de agora... e depois, fui eu que as arranquei lá dos cafundós mexicanos para trazê-las para este circo renascentista e para este covil iluminista/lusitano... Estado de Guerrero! Guanajuato! Chiapas! Campeche! Michoacán!... O que é que aqueles melancólicos nativos pretenderam colocar em seus olhares? Estavam projetando os próprios, de desespero e de capitulação, ou os de cobiça, dos espanhóis? Ah, os espanhóis, aqueles evangelistas e catequizadores trambiqueiros que os obrigavam a negociar uma tonelada de ouro em troca de um salame e meia tonelada de prata em troca da Bíblia ou da apostila do Directorium inquisitorum, porquê, para o deleite dos deuses e dos monarcas de lá, era necessário revestir as estátuas de madeira da Catedral barroca de Toledo com lâminas de ouro... Ah, e elas seguem me observando... Umas, simpáticas e cheias de gratidão, outras visivelmente enfezadas... Mas apesar de quererem  dar-se uma importância maior do que têm, me parecem apenas aquilo que dizia Oto Bihalji-Merin: "o símbolo de alienação mais antigo que se conhece".

Passo para a biblioteca e elas seguem me olhando com ironia, mas já com um olhar até mais simpático. Agora penso num palestrante lá da UNAM, N. Rubio, V.J.: "O homem que se coloca uma máscara transforma, mesmo que seja temporariamente, seu ser e se põe em comunicação com o outro mundo. Sai de sua insignificância, de seu anonimato, de seu permanente desamparo e se converte num ser superior, poderoso e temível. Exerce de repente, um poder inesperado sobre seus semelhantes, que o eleva sobre eles..." Já, para Laing, a vaca sagrada da antipsiquiatria, "sob o manto de uma outra personalidade, a pessoa pode agir com muito mais competência"... Daí, talvez, os disfarces dos Césares quando deambulavam pelos prostíbulos; daí a capa e o batom dos travestis; o capuz dos torturadores...

Saio para a varanda e lá, as que adquiri nas montanhas de Huatla, nos arredores da cabana de Maria Sabina, me olham com a sobriedade de sempre. Ufa! Uma delas, zoomorfica, pendurada à altura de meus olhos, ao ver que me preparava para fotografá-la, murmurou, quase num tom fraternal, esta frase de John Everard: "Se estiveres sempre agarrado à letra da palavra, sempre lambendo-a, sempre mascando-a, que grande coisa fazes? Não admira que estejas tão faminto..."



















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