sábado, 4 de dezembro de 2021

O sonho com alcaparras...


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"Que é a verdade?, perguntou Pôncio Pilatos. E afastou-se, sem esperar a resposta..."(France)



Como hoje é o dia do Sabat, e ainda com chuva, os mendigos estavam amontoados como ovelhas sob a marquise de um mercado, a espera de alguma migalha. Sempre há uma ou outra senhora piedosa que identifica neles um filho desertor ou até mesmo o marido morto precocemente, e lhes dá um pacote de spaguetti, um litro de leite.., uma lata de atum... Até mesmo uma barra de chocolate... mas jamais uma garrafa de cachaça.

Um deles relatava para o Mendigo K que havia tido um sonho curioso que o perturbou até de madrugada. Dizia que passou a noite inteira tentando lembrar-se o nome de um ingrediente que uma antiga tia, nascida às margens do Mediterrâneo, colocava nas frigideiras sobre a carne. O Mendigo K o ouvia atentamente.

Acendi a vela do barraco, - ia relatando em detalhes - perguntei para minha mulher, (que já havia trabalhado em sua colheita na Província de Roquevare...); busquei nas anotações antigas, fui tentando com todas as letras do alfabeto e nada de lembrar. E a madrugada avançava silenciosa como um deserto. Como se chamava mesmo? A palavra me fugia. Eu a sentia no arquivo da memória e até no olfato, mas ela parecia esconder-se. Começaria com a? Ou com p? Nem sabia se se tratava de uma semente, de uma fruta, de uma casca. Só sabia que era um condimento extremamente salgado... A via frequentemente nas prateleiras do mercado, em conserva. Tentava dormir mas a obsessão recomeçava. Como se chamava aquele têmpero? Aquele condimento? Seria com L ou com M?

Até que de repente, misteriosamente, a palavra apareceu: ALCAPARRAS. Voltei a acordar minha mulher para relatar-lhe o sonho com as alcaparras. Então, ela, em meio a bocejos, esclareceu que o que mais lembrava daqueles tempos de colheita, era que perdeu no meio dos arbustos, um anel cravejado com pedrinhas falsas que havia recebido de presente de um taumaturgo egípcio... E que a tal alcaparra, não tinha nada a ver com sementes, nem com cascas, nem com frutos, mas com botões de flores. Eram os botões de flores de um arbusto conhecido por capparis spinosa.

Espinosa? Lembrei logo do filósofo holandes! Mas também dos poetas delirantes do romantismo... "O coração não morre quando achamos que deveria" (C. Milosz)

Ela bocejou e prosseguiu: Íamos para a colheita bem cedo. E lá mesmo, no campo, colocávamos aqueles brotos tingidos de lilás, recém colhidos, delicadamente em vidros com água salgada. Em casa já havia outros ingredientes redondos, no formato de abóbodas de vidro, onde eram armazenados com umas gotas de vinagre grego,  e então esperávamos até que o tempo os transformasse em picles...

Voltou a bocejar e a lacrimejar enquanto eu, que sempre quis ser botânico, exclamava: caralho! Mas então são botões de flores? Como é que Van Gogh nunca pensou em pintá-los? E qual seria o significado desse sonho?

Ela prometeu que, quando amanhecesse, iria consultar a Freud e sua Interpretação dos Sonhos... Por sorte não mencionou Lacan e nem a Jung...

Um trovão anunciou a volta do chuvisco...



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