quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

O Mendigo K, seu cavalo e o consolo dos aflitos...



Nesta quarta-feira de temporais, o Mendigo K apareceu pilotando uma carroça ao lado de sua mulher. Rodas novas, com uma placa verde de embaixada pregada na parte traseira e com um cavalo fogoso e agitado, mas sem ferraduras. - Meus cavalos não usam ferraduras, não corto o rabo de meus cachorros e nem capo meus gatos - foi logo dizendo.

Na camiseta branca dos dois, havia uma frase de Baudelaire: "Prenda-me a ti e de nossas duas misérias, talvez, possamos viver uma espécie de felicidade..."

Saltou da carroça com o relho na mão direita e foi logo filosofando: Bazzo, observe como, com as traquinagens do natal já esgotadas (por este ano), os comerciantes já começam investir nas traquinagens do (fim) do ano e do (ano novo)... Para iludir os palhaços de turno acionam a mídia (escrita, televisiva e até alguns camelôs que passam em seus carros velhos com os alto-falantes ligados), prometendo a felicidade numa cesta de café da manhã; numa viagem para Bariloche; num retiro espiritual... E as ratazanas, vorazes e esperançosas aparecem nas janelas, com suas caras, fusão de Madalena com Messalina e nos jogam (com uma indisfarçável ponta de nojo) uma lata de atum ou de milho, ou outra coisa qualquer e simulam uma grande expectativa. Ah! 2022 será o nosso ano! Ah! Recuperar o tempo perdido! E tudo voltará ao normal! Tudo se realizará, inclusive as bobagens que esperamos desde que nascemos... Ah! estamos nos sentindo quase como os servos russos quando foram libertados pelo Czar II... Agora só falta a emancipação do trabalho, como foi prometida por Lenin... Ufa! E já se pode imaginar os tiroteios às margens do lago. Os padres, dentro de seus arreios, que enviam os coroinhas para acionar os sinos... Os netos dos filhos dos filhos dos mendigos que congestionam os semáforos com suas caixinhas... Uma ajuda e Feliz Ano Novo! De onde nos veio essa obsessão pela felicidade? O que é isso, afinal? E as badaladas se fundem ao cheiro da pólvora e aos gritos de Feliz Ano Novo! Os deputados, Senadores, ministros, assessores e comadres, convocaram dois ou três pistoleiros para vigiar suas mansões, sua meia dúzia de automóveis, seus cachorros e partem para Paris... Ah, como Paris é linda vista da cobertura do Pompidou ou dos janelões da Rive gauche! Aquele bando de árabes, de indianos, de africanos e de latino-americanos em farrapos, lá em baixo, driblando a policia e zanzando em busca de migalhas... E há também muitos brasileiros festejando por lá, muitos dos nossos artistas... os tais clows de palco! Todos revolucionários! Todos transbordando virtudes de catálogo e queimando incenso para si mesmos! Bah! E o fazem cheios de veleidades e com pose de subversivos, em homenagem ao populacho romântico que, por aqui, como borboletas noturnas, vai comprando seus discos, os idolatrando e passando o ano chorando melancolias alheias... é o consolo dos tolos e dos aflitos! Mas e a COVID? - Indaga a mulher - Ora, - retruca ele - me cite os ricos que foram afetados! Dos 600 mil, apenas cinco ou seis são tubarões, o resto é de pobres e fodidos... Até o vírus tem aporofobia! Os pobres que se cuidem! Que fiquem em casa (que casa?) e que tomem Ivermectina ou chá de Hibisco!! Que olhem os fogos pela janela ou que, no máximo, vão à prainha levar um buquê de hortênsias para Iemanjá e que gritem Feliz ano Novo para algum mercenário ou para as capivaras... ou para si mesmos... Afinal, todo mundo sabe: é bobagem! Ninguém acredita, todo mundo sabe que é só retórica... Pensem nas enchentes da Bahia. Há 100 anos aquele horror se repete! Por todos os lados gente humilhada e ofendida faiscando blasfêmias contra o rio e no meio da lama.., mas assim que o sol secar os colchões, tudo se normalizará...pelo menos até as chuvas do ano que vem! A propósito, é importante tomar consciência de que não é o rio que invade as cidades e as casas, mas as cidades e as casas que invadem o leito dos rios! Também aqui, entre nós, longe das barragens suicidas, fazem dez anos que prometem consertar as calçadas, mas... todos os dias alguém despenca num buraco e se quebra uma perna...  Mancando, mártires de suas crenças, vão até uma delegacia de policia com a ilusão de processar o Estado, mas logo descobrem que, como dizia Nietzsche, o Estado é um monstro intoxicado de brutalidades. - Desistem e vão, de joelhos, pedir graças na Dom Bosco; encomendar uma macumba num Centro ou choramingar ao ortopedista... E o ano que vem os buracos, ainda mais profundos, continuarão lá e as clinicas de ortopedia se multiplicaram...  Feliz Ano Novo! A pandemia? Ironizam os senhores da política. Ora, nosso plano de saúde nos dá cobertura em qualquer lugar do mundo...  Além disso, em caso de necessidade, temos uma suite cativa no Sírio Libanês ou no Einstein, para qualquer emergência nossa ou de nossa família... (E todo eso, por cuenta del Estado... y por amor a la pátria!..). 

O cavalo se agita e a mulher, que além de misândrica, está visivelmente transtornada, desabotoa dois botões de um casaco de plástico esverdeado e, agitando o relho no ar, resmunga meio em deboche: Como diria Mussolini, parafraseando a C. Fourier: Falanstério dos impotentes!


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