terça-feira, 4 de dezembro de 2018

E o mendigo K é roubado...






 "Sou um trapaceiro. Você não pode me trapacear. Eu trapaceei tantos trapaceiros..!" 
Rajneesh

Acabo de encontrar o mendigo K próximo a estação do metro Santo Domingo.  Ia apressado em direção a uma delegacia de policia que há por aqueles lados. Estava furioso. Haviam lhe roubado o celular. O telefone celular que aqui chamam de telemóvil. Olhava para todos que passavam de forma quase ameaçadora querendo identificar o ladrão. No meio da conversa me disse: sabes que tenho vestígios cristãos em meu DNA...Não sabes? E que sou até meio humanista... Não sabes?  E sabes que eu até seria capaz de perdoar esse ladrãozinho fdp... Não é verdade? - fez uma pausa e concluiu-: mas só depois de vê-lo enforcado...
Passamos por alguém tocando piazzolla no acordeão. Tentei persuadi-lo de que afinal não era para tanto, uma vez que se tratava apenas de um celular, desse aparelhozinho de merda que todo idiota tem um... Mas ele estava furioso e insistiu até em relatar-me detalhadamente a abordagem e a sabedoria do ladrão, sem conseguir esconder uma espécie de admiração pelo larápio: 
-Estava no segundo andar de um café cercado por outros jubilados, desocupados e, para usar uma expressão cínica de Robert Arlt, por vários chupa-tintas espanhóis. - Foi me dizendo.  Estava mergulhado na leitura do livro de Edgar Wind: ARTE E ANARQUIA, exatamente na página 28, onde o autor fazia esta citação de Baudelaire: "El exceso de frenesi en el arte, es un câncer que devora todo lo demás...".
E foi nesse momento que se apresentou diante de mim um homem de uns 35 anos, (1,60, cabelos pretos, queimado pelo sol de algum pico nevado, com ombros largos como o dos nepaleses que sobem o Himalaia levando nas costas as tralhas dos alpinistas ou como os peruanos que vivem ao redor dos andes...) fingindo que chorava e pedindo - em nome de Deus - que eu o ajudasse. Levava uma folha de papel nas mãos dobrada em forma de sanfona com algo escrito dentro dela, folha que, no auge de sua pantomima, foi colocada entre minha cara e a mesa... o resto - mesmo não sendo um ladrão - você já pode deduzir...
Uns segundos depois o vi correndo lá embaixo já quase em frente ao Cine Callao... (de maneira meio sádica, vingativa e clinica, fiquei imaginando a quantidade de cortisol que devia estar lhe devorando as veias e as entranhas...)

Nesta parte do relato fez uma pausa, tentou descrever a cólera e a vergonha que sentia por ter sido feito de otário, procurou alguma coisa nos bolsos do casaco e entrou bruscamente na delegacia custodiada na porta por dois soldados com espingardas para retornar em seguida para dizer-me, meio espantado, que na sala de espera haviam74 pessoas para fazer a mesma queixa que ele... 
Indaguei a um dos policiais o que estava acontecendo com a Espanha, mas ele fingiu não entender-me...
E la nave va...


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