quarta-feira, 20 de maio de 2009

Memórias de uma mendiga sobre o cio de sua gata


“- Qual madame dessa sociedade hedionda já acompanhou o primeiro cio de uma gata? Qual o homem que teve a paciência de ignorar a máquina infernal da sociedade por uns momentos e acompanhar os estremecimentos e a tortura que o cio provoca? Observando aquela pequena pantera doméstica que não encontrava sossego em nenhuma posição e que era subjugada e obrigada pela biologia e pelo instinto a buscar um macho e a reproduzir sua espécie ficava meditando sobre a maldade da vida. Sobre o destino cruel das carnes. Sobre a objetização de todos os seres por uma força invisível e cruel que, da clandestinidade dos genes, dita ordens irrefutáveis...

Entre meus devaneios — prosseguia a mendiga — uma conclusão era mais do que óbvia: quão cruel e violenta deve ter sido a luta da civilização para sufocar o cio humano! Como as fêmeas primitivas que hoje são mendigas como eu, mães, putas, filhas, avós etc., devem ter sido amaldiçoadas, sufocadas e destruidas para poderem conquistar o silêncio onde estão. Nenhum miado, nenhum escândalo, nenhum desassossego... Apenas uma cólica mensal, um hálito um pouco mais forte... Nada que um um chá de losna não resolva. Quantos milhões de anos foram necessários para reduzir na mulher esse cio, para colocá-lo sob controle, para proibir esse choro noturno inconsolável? Quantas ameaças e quanto espanto deve ter assaltado a sexualidade feminina, para que a mulher pudesse chegar a esse oceano sem tormenta e nele ancorar para sempre?

Quatro, cinco, seis horas da madrugada. A gata choramingava por entre os bagulhos do barraco, rolava pelo chão ressecado, inventava mil posições, criava seu Kama Sutra, lambia-se em alucínio, ia ao barraco vizinho e clamava por qualquer coisa que pudesse vir a ser o objeto de seu cio... Mas a noite era escura demais! A noite era escura para ela e para os mendigos que dormiam, tão escura e tenebrosa que nem o eco de seu chamado retornava ao canto onde pemaneciamos domados. Às vezes ouvia-se os resmungos de uma companheira de infortunio que sentia-se incomodada pelo “escândalo” supremo daquela fêmea. A gata, além de não deixá-la dormir, devia, com seus miados libidinosos, rememorar suas origens remotas e mutiladas...

O dia quase amanhecia, a paixão ainda a atormentava e ela tentava construir à sombra do barraco, entre bengalas e latas velhas o seu “Deus” e até mesmo o seu “Everest”. Não conseguia. Reprimi-a! Ergui contra ela esta voz de mulher acostumada a pedir restos, por misericórdia! Chutei-lhe o traseiro, exatamente como fizeram comigo e com todas as “fêmeas” durante séculos. Então ela calou-se. Sufocou seu miado. Encolheu-se por debaixo de um cobertor deixando apenas ver o resplendor de seus olhos. Senti que pelo menos por uns instantes minha violência era mais implacável que a violência dos genes... “

A velha mendiga repetiu essa frase várias vezes olhando-me diretamente nos olhos para depois fazer um longo silêncio e concluir:

“Talvez o que é esnobemente conhecido por desejo pelos lunáticos da atualidade, não seja mais do que a última migalha dessa fúria que, pela ação do chicote, deslocou-se de entre as pernas para a memória...”

Ezio Flavio Bazzo

Um comentário:

  1. se nos livrarmos da horrenda e mísera dona de casa e esposa dedicada do futuro, a herança - quanto mais riqueza, maior a miséria -, se enxotarmos toda ridícula, frígida e decadente viciada parideira, a moralidade - quanto mais divina mais imbecil o parido -, se optamos por uma voluptuosa promiscuidade, muito bem cuidada pela boa medicina voltada a ampliar o prazer e, não aquela que seu objeto maior é proibir o fumo, a bebida e outros excessos maravilhosos da natureza ou da química, com o que ficamos? com trepadas que reprimem vetos, que conquistam hesitações, que não se aterrorizam com livros-terroristas sobre doenças sexualmente transmissíveis, que odeiam qualquer introversão e inibição e que nada mais lembram que algum dia houve ansiedades e sublimações. que o sagrado santo cio, provindo seja lá de onde, do cú, da xota, do pau e da boca, nunca deixe de saudar a vida com suas mais belas e terríveis heresias.

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