domingo, 14 de julho de 2024

DOS MONUMENTOS... E e da neurose da mentalidade póstuma...


"...Carecer de convicções a respeito dos homens e de si mesmo, este é o elevado ensinamento da prostituição, essa academia ambulante de lucidez à margem da sociedade, como a filosofia. Inclusive elas, as putas, nunca reivindicaram para si nenhum tipo de Museu, de Memorial ou de Monumento..."
E.M.C




A decisão de criar o Museu da Bíblia proposta pelo governador do GDF e pela comunidade evangélica local ainda tramita pelos subterrâneos dos tribunais. Já estava autorizada quando, por um raio de luz, foi questionada pela Sociedade dos Ateus e dos agnósticos.

Agora está em movimento e em discussão também a criação de um ESPAÇO ATHOS BULCÃO. Na essência, com a mesma finalidade daquele...

Adversários e defensores dos dois projetos, neste domingo silencioso e estupendo de sol, (com as araras famintas dando rasantes sobre as casas), discutiam, movidos pelos mesmos argumentos e pela mesma fé, ali no boteco da esquina. O Mendigo K, depois de ouvir as discussões, dirigiu-lhes a palavra para indagar:  Qual dos dois seria realmente laico?

Ninguém respondeu mas, na verdade, todos estavam apreensivos e curiosos para saber se a turma da Sociedade dos Ateus e Agnósticos, iria se pronunciar e criar problemas, como criou para a construção do Museo da Bíblia... Uma senhora protestou: mas é ridículo comparar a Bíblia com as transcendentes canecas e com as transcendentes andorinhas do Athos Bulcão!!! (Ninguém entendeu se ela estava defendendo a Bíblia ou as Andorinhas!!!)

Silêncio. A mística e o culto teriam semelhanças?

As araras, com aquelas cabeças e corpos desproporcionais e com as cores da bandeira nas asas, grasnando, deram uma rasante sobre o boteco e palco das discussões...

Depois de mais uma meia hora de discussões acaloradas e de ter colocado a questão do laicismo aos grupos, o Mendigo K retirou da bolsa uma edição do Le Figaro (de 1910) onde estava publicado o Manifesto Futurista do Marinetti e passou a declamar algumas partes pertinentes:

"Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: no entanto, temos já esbanjado tesouros, mil tesouros de força, de amor, de audácia, de astúcia e de vontade rude, precipitadamente, delirantemente, sem calcular, sem jamais hesitar, sem jamais repousar, até perder o fôlego... Olhai para nós! Ainda não estamos exaustos! Os nossos corações não sentem nenhuma fadiga, porque estão nutridos de fogo, de ódio e de velocidade!... Estais admirados? É lógico, pois não vos recordais sequer de ter vivido! Erectos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às estrelas!... queremos libertar este país de sua fétida gangrena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários.

Há muito tempo que este país vem sendo um mercado de belchiores. Queremos libertá-lo dos incontáveis museus que o cobrem de cemitérios inumeráveis.

Museus: cemitérios!... Idênticos, realmente, pela sinistra promiscuidade de tantos corpos que não se conhecem. Museus: dormitórios públicos onde se repousa sempre ao lado de seres odiados ou desconhecidos! Museus: absurdos dos matadouros dos pintores e escultores que se trucidam ferozmente a golpes de cores e linhas ao longo de suas paredes!

Que os visitemos em peregrinação uma vez por ano, como se visita o cemitério dos mortos, tudo bem. Que uma vez por ano se deposite uma coroa de flores diante de Dom Bosco, do Niemayer e do Bulcão, vá lá. Mas não admitimos passear diariamente pelos museus, nossas tristezas, nossa frágil coragem, nossa mórbida inquietude. Por que devemos nos envenenar? Por que devemos apodrecer?

E que se pode ver num velho quadro, senão a fatigante contorção do artista que se empenhou em infringir as insuperáveis barreiras erguidas contra o desejo de exprimir inteiramente o seu sonho?... Admirar um quadro antigo equivalente a verter a nossa sensibilidade numa urna funerária, em vez de projectá-la para longe, em violentos arremessos de criação e de acção.

Quereis, pois, desperdiçar todas as vossas melhores forças nessa eterna e inútil admiração do passado, da qual saís fatalmente exaustos, diminuídos e espezinhados?

Em verdade eu vos digo que a frequentação quotidiana dos museus, das bibliotecas e das academias (cemitérios de esforços vãos, calvários de sonhos crucificados, registros de lances truncados!...) é, para os artistas, tão ruinosa quanto a tutela prolongada dos pais para certos jovens embriagados, vá lá: o admirável passado é talvez um bálsamo para tantos os seus males, já que para eles o futuro está barrado... Mas nós não queremos saber dele, do passado, nós, jovens mendigos e fortes!

Bem-vindos, pois, os alegres incendiários com os seus dedos carbonizados! Ei-los!... Aqui!... Ponham fogo nas estantes das bibliotecas!... Desviem o curso dos canais para inundar os museus!... Oh, a alegria de ver flutuar à deriva, rasgadas e descoradas sobre as águas, as velhas telas gloriosas!... Empunhem as picaretas, os machados, os martelos e destruam sem piedade as cidades veneradas!

Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: resta-nos assim, pelo menos um decênio... Os mais jovens e válidos que nós nos deitarão no cesto de papéis, como manuscritos inúteis. - Pois é isso que queremos!

Nossos sucessores virão de longe contra nós, de toda parte, dançando à cadência alada dos seus primeiros cantos, estendendo os dedos aduncos de predadores e farejando caninamente, às portas das academias, o bom cheiro das nossas mentes em putrefacção, já prometidas às catacumbas das bibliotecas.

Mas nós não estaremos lá... Por fim eles nos encontrarão - uma noite de inverno - em campo aberto, sob um triste telheiro tamborilado por monótona chuva, e nos verão agachados junto aos nossos aviões trepidantes, aquecendo as mãos ao fogo mesquinho proporcionado pelos nossos livros de hoje, flamejando sob o voo das nossas imagens.

Eles se amotinarão à nossa volta, ofegantes de angústia e despeito, e todos, exasperados pela nossa soberba, inestancável audácia, se precipitarão para matar-nos, impelidos por um ódio tanto mais implacável quanto os seus corações estiverem ébrios de amor e admiração por nós.

A forte e sã injustiça explodirá radiosa em seus olhos - A arte, de facto, não pode ser senão violência, crueldade e injustiça.

- Vós nos opondes objecções?... Basta! Basta! Já as conhecemos... Já entendemos!... Nossa bela e hipócrita inteligência nos afirma que somos o resultado e o prolongamento dos nossos ancestrais. - Talvez!... Seja!... Mas que importa? Não queremos entender!... Ai de quem nos repetir essas palavras infames!...

Cabeça erguida!...

Erectos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às estrelas."












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