terça-feira, 17 de maio de 2022

Um assunto só para místicos & esotéricos... e só para gente educada em hospícios...

 

"Possuía uma fortuna em lençóis; 

mas, um dia, lhe foram furtados por uma tribo de fantasmas..."

(Ramón Gómez de la Serna)



Domingo passado, um grupo de religiosos, com alto-falantes, mesas, arreios coloridos e outros apetrechos, ocuparam a quadra aqui nas proximidades e, durante umas duas horas rezaram, dançaram, discursaram, recontaram lendas das antigas tribos da Palestina, interpretaram reflexões dos ribeirinhos lá dos cafundós do Jordão e etc. E os moradores dos prédios vizinhos, principalmente aqueles com mais de 70, pressionados pelo tempo e pelas circunstâncias, iam aos poucos se encaminhando para lá, com aquela marcha de quem carrega nos ombros todas as dores e culpas do mundo. 

A verborréia entrava nos apartamentos por todos os lados, pelo buraco das chaves e pelas frestas e sulcos das janelas. E o animador, que por sinal tinha um sotaque de latino-americano (com todo cuidado para eu mesmo não tomar consciência de minha xenofobia, me perguntava: seria da Bolivia? Do Perú? Da Venezuela? Ou será da Itália?) com aqueles papos escolados de vendedores de raízes em feiras, ia ficando cada vez mais excitado ao ver a praça se enchendo de fiéis, e aumentava o som. Entretanto, os moradores que já haviam jurado  devoção e fidelidade a outras divindades e a outras seitas assistiam aquele movimento desde suas varandas, torciam o nariz e, disfarçadamente, voltavam para suas alcovas... 

E o catequizador latino falava com ênfase em Jesus, em Deus, em Israel, nos truques para a Salvação e nas artimanhas para, sorrateiramente, alcançar a porta dos fundos do Paraíso. Discorria sobre a Páscoa; sobre a guerra da Ucrânia; sobre as safadezas eternas da espécie; sobre o tesão e o assédio de Adão; sobre o amor infinito; sobre o mundo como uma espécie de cânion de lágrimas e, claro, também sobre a morte, a derradeira, eterna e definitiva morte do espírito... Falava sobre tudo isso com uma tal intimidade e familiaridade que fazia qualquer um ter certeza de que, realmente, se tratava de um expert e de um perito em desfaçatez. Enquanto algumas pessoas presentes até faziam confissões intimas de suas neuroses, meu falecido cachorro enviou-me um Zapp perguntando: Mas Bazzo, será que esse charlatão irá praticar também algum tipo de milagre? 

A manhã era de sol! Desse sol de outono que convida os Barnabés aposentados a se esticarem nos bancos das praças palitando os dentes, enquanto suas mulheres, delicadamente, vão passando protetor solar por sobre e pela beirada dos lábios.... 

Conforme ia percebendo o clima e o estado hipnótico da platéia, o mensageiro divino alterava vivaldinamente o timbre da voz. Saltava para um trecho da Bíblia mais ameaçador ou mais palatável e consolador, falando - por exemplo - do vacilo de Eva, enquanto se dirigia à santidade das mocinhas virgens presentes, patrulhadas por antigos e cansados burocratas... E sutilmente, com insinuações apocalípticas, provocava os descrentes e hereges que, - acreditava, com razão  -, deviam estar espiando por detrás das persianas, fumando, ou, já que era domingo, estar libidinosamente ainda sob as cobertas. Era curioso e bizarro ouvi-lo falar dos essenios, (grupo de despirocados que teria existido 2 séculos antes de Cristo e que teria sido dizimado no ano 69). Sim, era curioso e surrealista ouvi-lo falar da Palestina; de Israel e de outras fábulas distantes, a uma população que não dominava muito bem nem sequer a geografia das veredas e das fronteiras do próprio bairro, que às vezes era até antisemita, e que, com certeza, estaria muito mais interessada na Batalha de Jenipapo no Piauí; nos empadões recheados de guariroba de Goiás Velho; nas fissuras das barragens de Minas Gerais; nas milícias do Leblon e no preço das diárias nos hotéis de Pasárgada. Intercalava discursos poéticos parnasianos com músicas depressivas enquanto a platéia, cabisbaixa e em círculo, se movia: dois passinhos para frente, para o meio do círculo e dois passinhos para trás, para fora do círculo. Uma viatura da polícia apareceu por lá, dizem que foi acionada por um morador de outra religião, mas quando os soldados ouviram que se tratava do Nome de Deus, deram meia volta e, com as sirenes desligadas, desapareceram. E tudo seguiu igual por mais umas boas horas, até que o Timer no bolso do animador acusou 11:45. Então lançou mais meia dúzia de ameaças e de aforismos transcendentais sobre a turba, misturando castelhano com português, desejou vida longa e um feliz domingo aos participantes, fez uma espécie de benção aos moradores da quadra e encerrou o ato.

Faço essa digressão para mencionar outra bizarrice acontecida no dia seguinte, logo pela manhã, exatamente no local onde havia sido  encenado o tal ritual: dois carros se chocaram, ficando um deles com as rodas para o ar. Segundo o expert do DETRAN, nem Alan Kardec e nem a Física Quântica seriam capazes de explicar a dinâmica do fato.

Os feiticeiros natos da quadra e os que juram que seu Reino não é deste mundo, imediatamente deduziram: Só pode ser coisa do Mal! E trataram de acender 7 daqueles círios grossos e longos trazidos do Pará. Alguma coisa teria dado errado? O pregador teria incitado forças erradas? É necessário reparar rapidamente o erro! Houve algum mal entendido? Teria sido o portunhol? A Confusão de Línguas de que tanto fala Ferenczi? Alguma Sincronia com o eclipse lunar (lua de sangue!?) e com o além? Ou foi pura coincidência e barberagem? Resultado da cada dia mais complexa indústria do irracional?

Teria alguma relação com o Outro mundo? Alguma mensagem cifrada? Algum sentido metafísico? 

Mas qual? Ah!, É preciso convocar um simpósio de emergência! Onde estão os velhos pioneiros e sábios astrólogos?

O vento e a força da gravidade ainda faziam as rodas girarem. Viaturas e curiosos, uns parecendo bem mais altruístas do que outros... Cheiro de borracha e de combustível. Ah, o olfato! Muita gente se aglomerou ao redor do sinistro. Outros espiavam das janelas... Visivelmente, tratava-se de um gozo mórbido e secreto pela tragédia, del Sentimiento tragico de la vida, descrito por Unamuno. 

 A avó do Mendigo K que ouvia cética a lógica e as especulações quase selvagens dos policiais e dos motoristas do guincho que haviam se deslocado para lá, olhou bem nos olhos de um dos mais exaltados e parafraseando a Konovalov, resmungou: Já que vieste ao mundo, vive e não raciocines!


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