Neste dia 11, com a manhã radiante, como todas depois de uma noite chuvosa, o Mendigo K estava lá na padaria. Não na padaria de sempre, em uma outra, tão suspeita quanto. Uma padaria dessas que às 5 da manhã, quando os padeiros chegam para ligar os fornos, se deparam com famílias inteiras de baratas e de ratazanas passeando sobre os balcões e mesas. E que, três horas depois, quando os clientes começam aparecer, cúmplices dos padeiros, já desapareceram completamente. Digerem e espreitam tremulando s bigodes.
Nesta manhã, o Mendigo, estava acompanhado por sua esposa. Uma mulher estupendamente bonita, nascida e criada na rua, com uma pele tostada pelo sol, as unhas vigorosas de tanto revirar o lixo dos containers e um olhar duro e amoroso de bandida. Interromperam a discussão quando me viram.
Sabe por quê estávamos brigando, me perguntou. Porque ela, nestes 9 meses de confinamento, não pode ir passear no Iguatemi. É viciada naquele shopping. Quando atravessa aquelas portas de vidro, entra em surto... se transforma em outra. Inspira o aroma daquelas boutiques com êxtase. Aromas que nela, funcionam como uma espécie de cocaína. Fica literalmente enlouquecida. Tem que fazer um esforço imenso para controlar sua cleptomania. Afinal, quem são dos donos de tudo isso? Pergunta a si mesma. Ah, não saberá! Ninguém sabe. S.A! Sociedade Anônima é isso. Segredo de justiça! Sigilo de fontes! Vai passando de vitrine em vitrine com os olhinhos vidrados de uma criança numa loja de brinquedos. Os travesseiros! Idealiza dormir com um travesseiro daqueles... As cafeteiras italianas... Os brincos de turquesa ... Os pacotes de fumo multicores para cachimbo... E as meias. Cor da pele e fabricadas em Veneza... Viu uma camisa azul clara, de puro algodão produzida pelos brâmanes de Nova Deli e que custava 167 dólares e insistia para que eu a roubasse: Você, com uma camisa dessas -dizia - vai ficar igual a um príncipe porto-riquenho ! Resisti.
No principio, tudo isso me irritava, me dava vergonha, fazia sentir-me exageradamente reacionário, mas depois, fui compreendendo que, como diz um escritor italiano: "Todas as mulheres são poliandras e que ninguém pode impedi-las de se exercitarem com todos os homens que lhes caem entre os joelhos: só o que lhes pedimos é o fingimento de fidelidade..."
Os aromas lá, não vou negar, são realmente afrodisíacos. Lembram as aeromoças da Primeira Classe da British Airways. As Galerias Lafayette. Os fumatórios de ópio da antiga Shangai. As monarquias religiosas pelo mundo a fora.
E fica olhando fascinada para as meninas que vão em bandos, de um lado para o outro, iludidas de que levam, pelo menos umas gotas de sangue dos Habsburgos nas veias. Se exibem de lá para cá, cheias de pacotes, todas com os olhinhos de felicidade, com roupinhas da moda e com calcinhas de 40 euros. Fica impressionada com o tamanho das boutiques, com os diálogos que escuta entre as vendedoras e as clientes, com a altura dos tetos. Quando pode rouba alguma coisa, quase sempre alguma coisa infantil, um bonequinho de lã nepalesa. As câmeras até registram esses pequenos furtos, mas os gerentes fazem de conta que não viram nada porque percebem nossa carência e o estado de nossa indigência. Os chocolates! Ah, quando ela se depara com uma loja de chocolates, chega a passar mal. E no dia que ouviu a vendedora dizer que aquelas barras maravilhosas eram produzidas na Suíça, mas com leite, cacau e castanhas brasileiras, ficou chocada. Lembrou misteriosamente de um discurso do Sarney, la na ONU, em 1985, onde ele dizia: Enquanto houver um único pobre no mundo, ninguém poderá ser verdadeiramente livre.
E em seguida, mais misteriosamente ainda, lembrou também, de uma frase do Victor Hugo citada recentemente pelo Lula, logo depois de sair da cadeia: O paraíso dos ricos é construído com o inferno (a desgraça) dos pobres!
Fez um breve silêncio e em seguida me indagou: Bazzo, você que se diz um sujeito estudado, me diga: qual é a diferença entre o Sarney e o Lula?
Fiquei em silêncio e ele continuou: Íamos umas duas vezes por semana ao Iguatemi. Fato que nos causou a expulsão do partido a que fazíamos parte: PFT/Partido dos fodidos da terra. Nunca entendemos direito por que é que aqueles dirigentes faziam de tudo para puxar a burguesia para baixo, para o lado da classe operária e dos proletários, ao invés de empurrar o proletariado para cima, para o lado da burguesia...
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