terça-feira, 31 de janeiro de 2012

CORREIOS: um diálogo com Vilém Flusser...


Quem conseguiu chegar vivo até o Museu Nacional dos Correios neste final de semana ficou surpreso com a exposição: Correios, um diálogo com Vilém Flusser. E digo (quem conseguiu chegar vivo) porque aquele território aos domingos pela manhã parece um bairro do inferno. Antes de conseguir entrar no prédio da exposição - por exemplo - assisti uma briga entre dois travestis que foi o máximo. O mais alto, esquelético, afetado e fantasiado de mulher espancava um mais baixinho, com uma mochila às costas, cara de gigolô e olhar de bandido. Chutes, coices, palmadas, mordidas, pauladas, gritos, maldições, choros, queixas, abraços, arrependimentos, enrabações momentâneas. Depois de um determinado tempo, já cansados, pareciam duas galinhas de briga nos estertores finais de uma batalha. Já não conseguindo mais nem ficar em pé veio a apoteose, com os dois de joelhos, um com as duas mãos no pescoço do outro e com a pausa suficiente para lamberem-se mutuamente a baba num arremedo de beijo. Durante todo o tempo da peleia parecia eminente o surgimento de um canivete ou de uma navalha entre eles. Mas não. Foram até a exaustão total apenas valendo-se da histeria, dos punhos, das unhas e das palavras. Depois o silêncio. Um deles caído como morto e o outro fugindo trôpego e desesperado...
A exposição em si não tem nada de especial (alguns objetos-máquinas-relógios-balanças, carruagens antigas e quase primitivas relativas ao envio, transporte e recebimento de correspondências, e só), mas o fato de terem associado o texto do Flusser a este evento quase burocrático foi interessante. Todo mundo conhece Flusser e seu livro A escrita, onde o filósofo tcheco dedica um capítulo às cartas e a atividade postal, um dos mais remotos meios de comunicação. {Eu desconheço - citação de Flusser grudada à parede - se já se desenvolveu alguma filosofia por meio da troca de cartas. Ela deveria partir de uma análise do esperar. Cartas são coisas por que se esperam ou chegam inesperadamente. Naturalmente, esperar é uma categoria religiosa: significa ter esperança. O Correio fundamenta-se no princípio da esperança}.

OBITUÁRIO: Flusser morreu em Praga, em 1991, num acidente de automóvel depois de fazer uma conferência.




CORREIOS: um diálogo com Vilém Flusser...


Quem conseguiu chegar vivo até o Museu Nacional dos Correios neste final de semana ficou surpreso com a exposição: Correios, um diálogo com Vilém Flusser. E digo (quem conseguiu chegar vivo) porque aquele território aos domingos pela manhã parece um bairro do inferno. Antes de conseguir entrar no prédio da exposição - por exemplo - assisti uma briga entre dois travestis que foi o máximo. O mais alto, esquelético, afetado e fantasiado de mulher espancava um mais baixinho, com uma mochila às costas, cara de gigolô e olhar de bandido. Chutes, coices, palmadas, mordidas, pauladas, gritos, maldições, choros, queixas, abraços, arrependimentos, enrabações momentâneas. Depois de um determinado tempo, já cansados, pareciam duas galinhas de briga nos estertores finais de uma batalha. Já não conseguindo mais nem ficar em pé veio a apoteose, com os dois de joelhos, um com as duas mãos no pescoço do outro e com a pausa suficiente para lamberem-se mutuamente a baba num arremedo de beijo. Durante todo o tempo da peleia parecia eminente o surgimento de um canivete ou de uma navalha entre eles. Mas não. Foram até a exaustão total apenas valendo-se da histeria, dos punhos, das unhas e das palavras. Depois o silêncio. Um deles caído como morto e o outro fugindo trôpego e desesperado...
A exposição em si não tem nada de especial (alguns objetos-máquinas-relógios-balanças, carruagens antigas e quase primitivas relativas ao envio, transporte e recebimento de correspondências, e só), mas o fato de terem associado o texto do Flusser a este evento quase burocrático foi interessante. Todo mundo conhece Flusser e seu livro A escrita, onde o filósofo tcheco dedica um capítulo às cartas e a atividade postal, um dos mais remotos meios de comunicação. {Eu desconheço - citação de Flusser grudada à parede - se já se desenvolveu alguma filosofia por meio da troca de cartas. Ela deveria partir de uma análise do esperar. Cartas são coisas por que se esperam ou chegam inesperadamente. Naturalmente, esperar é uma categoria religiosa: significa ter esperança. O Correio fundamenta-se no princípio da esperança}.

OBITUÁRIO: Flusser morreu em Praga, em 1991, num acidente de automóvel depois de fazer uma conferência.




sábado, 28 de janeiro de 2012

Erudição subsolar...


Acabo de cruzar com aquele mendigo, meu conhecido, ali pelos lados do Brasília Shopping. Ia circunspecto, descalço, uma camisa em farrapos e quase correndo por entre uma centena de automóveis. Já no seu cumprimento lacônico percebi que não estava no seu dia hipomaníaco e nem a fim de grandes conversações como era de costume. Disse-me estar "morando" nos fundos de uma oficina mecânica próxima ao Colégio Militar e que estava indo para casa porque havia assumido o compromisso de, neste final de semana, devorar três livros. Três livros? - exclamei. Quem é que lê três livros num final de semana neste país de analfabetos? Sem dar muita importância para o que eu havia dito, tirou de um saco plástico duas obras de Dostoiévski e um estudo psicanalitico sobre o escritor russo. Memórias da casa dos mortos; Memórias do subsolo e Dostoiévski e o parricídio, este escrito por Freud em 1928. Sentiu-se visivelmente chateado e contrariado quando pedi para dar uma olhada nos livros. Fui extremamente breve. No primeiro, li este texto que estava sublinhado a grafite:

- "Quase todos os presos falam durante a noite e deliram. Insultos palavras entrecortadas, facas, machados, é o que lhes vem com mais frequencia à boca, nos seus delírios.
- Segura-o, segura-o! A cabeça, corta-lhe a cabeça, a cabeça!
Somos uns homens perdidos -, diziam. - Estamos mortos por dentro e é por isso que gritamos de noite...".

No segundo, exatamente na página 17, havia esta parte marcada por pequenas setas:

"Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo os meus dias em meu canto, incitando-me a mim mesmo com o consolo raivoso - que para nada serve - de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar-se algo, e de que somente os imbecis o conseguem. Sim, um homem inteligente do século dezenove precisa e está moralmente obrigado a ser uma criatura eminentemente sem caráter; e uma pessoa de caráter, de ação, deve ser sobretudo limitada. Esta é a convicção dos meus quarenta anos. Estou agora com quarenta anos; e quarenta anos são, na realidade, a vida toda; de fato, isso constitui a mais avançada velhice. Viver além dos quarenta anos é indecente, vulgar, imoral! Quem é que vive além dos quarenta? Respondei-me sincera e honestamente. Vou dizer-vos: os imbecis e os canalhas..."

No texto sobre Dostoiévski e o parricídio, logo no quarto parágrafo Freud escreveu e aquele leitor excepcional marcou com letra vermelha:

"Tampouco o resultado final da luta moral de Dostoiévski é louvável. Depois de lutar desesperadamente por conciliar as aspirações instintivas do indivíduo com as exigencias da comunidade humana, acaba submetendo-se a autoridade estatal e a eclesiastica, venerando o tsar e ao Deus dos cristãos e propugnando por um estreito nacionalismo russo, atitude a qual outros espíritos mais vulgares chegaram com muito menos esforço. Este é o ponto débil da magna personalidade de Dostoiévski: não quis ser um professor e um libertador da humanidade e se situou ao lado de seus carcereiros. O porvir cultural da humanidade terá muito pouco que agradecer-lhe".

EM TEMPO: Quando lhe devolvi os livros tive que reprimir esta frase cínica de Baudelaire: "Quanto mais se lê, menos se fode!!!"

Erudição subsolar...


Acabo de cruzar com aquele mendigo, meu conhecido, ali pelos lados do Brasília Shopping. Ia circunspecto, descalço, uma camisa em farrapos e quase correndo por entre uma centena de automóveis. Já no seu cumprimento lacônico percebi que não estava no seu dia hipomaníaco e nem a fim de grandes conversações como era de costume. Disse-me estar "morando" nos fundos de uma oficina mecânica próxima ao Colégio Militar e que estava indo para casa porque havia assumido o compromisso de, neste final de semana, devorar três livros. Três livros? - exclamei. Quem é que lê três livros num final de semana neste país de analfabetos? Sem dar muita importância para o que eu havia dito, tirou de um saco plástico duas obras de Dostoiévski e um estudo psicanalitico sobre o escritor russo. Memórias da casa dos mortos; Memórias do subsolo e Dostoiévski e o parricídio, este escrito por Freud em 1928. Sentiu-se visivelmente chateado e contrariado quando pedi para dar uma olhada nos livros. Fui extremamente breve. No primeiro, li este texto que estava sublinhado a grafite:

- "Quase todos os presos falam durante a noite e deliram. Insultos palavras entrecortadas, facas, machados, é o que lhes vem com mais frequencia à boca, nos seus delírios.
- Segura-o, segura-o! A cabeça, corta-lhe a cabeça, a cabeça!
Somos uns homens perdidos -, diziam. - Estamos mortos por dentro e é por isso que gritamos de noite...".

No segundo, exatamente na página 17, havia esta parte marcada por pequenas setas:

"Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo os meus dias em meu canto, incitando-me a mim mesmo com o consolo raivoso - que para nada serve - de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar-se algo, e de que somente os imbecis o conseguem. Sim, um homem inteligente do século dezenove precisa e está moralmente obrigado a ser uma criatura eminentemente sem caráter; e uma pessoa de caráter, de ação, deve ser sobretudo limitada. Esta é a convicção dos meus quarenta anos. Estou agora com quarenta anos; e quarenta anos são, na realidade, a vida toda; de fato, isso constitui a mais avançada velhice. Viver além dos quarenta anos é indecente, vulgar, imoral! Quem é que vive além dos quarenta? Respondei-me sincera e honestamente. Vou dizer-vos: os imbecis e os canalhas..."

No texto sobre Dostoiévski e o parricídio, logo no quarto parágrafo Freud escreveu e aquele leitor excepcional marcou com letra vermelha:

"Tampouco o resultado final da luta moral de Dostoiévski é louvável. Depois de lutar desesperadamente por conciliar as aspirações instintivas do indivíduo com as exigencias da comunidade humana, acaba submetendo-se a autoridade estatal e a eclesiastica, venerando o tsar e ao Deus dos cristãos e propugnando por um estreito nacionalismo russo, atitude a qual outros espíritos mais vulgares chegaram com muito menos esforço. Este é o ponto débil da magna personalidade de Dostoiévski: não quis ser um professor e um libertador da humanidade e se situou ao lado de seus carcereiros. O porvir cultural da humanidade terá muito pouco que agradecer-lhe".

EM TEMPO: Quando lhe devolvi os livros tive que reprimir esta frase cínica de Baudelaire: "Quanto mais se lê, menos se fode!!!"

A volta das feras ucranianas... Agora sob a neve de Davos...







A volta das feras ucranianas... Agora sob a neve de Davos...







sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Um Santo Antão falsificado...

Os jornais europeus colocam em cena um novo e exótico personagem no caso do navio Costa Concórdia, aquele que na semana passada naufragou num piscinão do Mediterrâneo. Depois do Berlusconi, que afundou a Itália e do Schettino que deixou o navio ir à pique, surgiu agora a história de um novo conterrâneo, o padre M.D. de uma comuna do norte da Itália que estava clandestinamente a bordo. O fato do religioso estar a bordo não representaria problema algum se ele não tivesse mentido aos seus paroquianos que iria para um "retiro espiritual". Só não será excomungado por sorte, pois para aquelas beatas, quase medievais, quando se fala em retiro espiritual se pensa logo em eremitismo tipo o do séc. IV, ou numa montanha inóspita (tipo a do Zaratustra), ou nos horrores do deserto, como no caso de Santo Antão (ilustração ao lado) ou até mesmo numa masmorra improvisada em casa onde o penitente fica de joelhos ruminando pregos e se sapecando a ponta dos dedos na fogueira de seus pecados enquanto vai exercitando a dialética de Cristo com o Demônio. Nada disso. O reverendo, ao invés dos horrores de um retiro estava desfrutando da luxúria de um cruzeiro. Ao invés de grãos de areia com espinhos de cactos ou fezes de camelo, suculentas lagostas com vinho rose. E isto, sem falar das noitadas de gala, das festanças dionisíacas com todo mundo desinibido ao lado das piscinas mais azuis que o próprio mar e tudo o mais que o capitalismo libidinoso sabe colocar a disposição nas vitrines desse imenso bordel que é o mundo. Como conseguirá explicar-se ao voltar para a cidadela de Besana Brianza aos que o consideravam até ontem o intermediário entre os céus e os infernos é o que todo mundo está querendo saber. Apesar das opiniões em contrário, é evidente que é às pessoas semelhantes a esse padreco que estará garantido o reino de deus.

Um Santo Antão falsificado...

Os jornais europeus colocam em cena um novo e exótico personagem no caso do navio Costa Concórdia, aquele que na semana passada naufragou num piscinão do Mediterrâneo. Depois do Berlusconi, que afundou a Itália e do Schettino que deixou o navio ir à pique, surgiu agora a história de um novo conterrâneo, o padre M.D. de uma comuna do norte da Itália que estava clandestinamente a bordo. O fato do religioso estar a bordo não representaria problema algum se ele não tivesse mentido aos seus paroquianos que iria para um "retiro espiritual". Só não será excomungado por sorte, pois para aquelas beatas, quase medievais, quando se fala em retiro espiritual se pensa logo em eremitismo tipo o do séc. IV, ou numa montanha inóspita (tipo a do Zaratustra), ou nos horrores do deserto, como no caso de Santo Antão (ilustração ao lado) ou até mesmo numa masmorra improvisada em casa onde o penitente fica de joelhos ruminando pregos e se sapecando a ponta dos dedos na fogueira de seus pecados enquanto vai exercitando a dialética de Cristo com o Demônio. Nada disso. O reverendo, ao invés dos horrores de um retiro estava desfrutando da luxúria de um cruzeiro. Ao invés de grãos de areia com espinhos de cactos ou fezes de camelo, suculentas lagostas com vinho rose. E isto, sem falar das noitadas de gala, das festanças dionisíacas com todo mundo desinibido ao lado das piscinas mais azuis que o próprio mar e tudo o mais que o capitalismo libidinoso sabe colocar a disposição nas vitrines desse imenso bordel que é o mundo. Como conseguirá explicar-se ao voltar para a cidadela de Besana Brianza aos que o consideravam até ontem o intermediário entre os céus e os infernos é o que todo mundo está querendo saber. Apesar das opiniões em contrário, é evidente que é às pessoas semelhantes a esse padreco que estará garantido o reino de deus.