Acabo de cruzar com aquele mendigo, meu conhecido, ali pelos lados do Brasília Shopping. Ia circunspecto, descalço, uma camisa em farrapos e quase correndo por entre uma centena de automóveis. Já no seu cumprimento lacônico percebi que não estava no seu dia hipomaníaco e nem a fim de grandes conversações como era de costume. Disse-me estar "morando" nos fundos de uma oficina mecânica próxima ao Colégio Militar e que estava indo para casa porque havia assumido o compromisso de, neste final de semana, devorar três livros. Três livros? - exclamei. Quem é que lê três livros num final de semana neste país de analfabetos? Sem dar muita importância para o que eu havia dito, tirou de um saco plástico duas obras de Dostoiévski e um estudo psicanalitico sobre o escritor russo. Memórias da casa dos mortos; Memórias do subsolo e Dostoiévski e o parricídio, este escrito por Freud em 1928. Sentiu-se visivelmente chateado e contrariado quando pedi para dar uma olhada nos livros. Fui extremamente breve. No primeiro, li este texto que estava sublinhado a grafite:
- "Quase todos os presos falam durante a noite e deliram. Insultos palavras entrecortadas, facas, machados, é o que lhes vem com mais frequencia à boca, nos seus delírios.
- Segura-o, segura-o! A cabeça, corta-lhe a cabeça, a cabeça!
Somos uns homens perdidos -, diziam. - Estamos mortos por dentro e é por isso que gritamos de noite...".
No segundo, exatamente na página 17, havia esta parte marcada por pequenas setas:
"Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo os meus dias em meu canto, incitando-me a mim mesmo com o consolo raivoso - que para nada serve - de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar-se algo, e de que somente os imbecis o conseguem. Sim, um homem inteligente do século dezenove precisa e está moralmente obrigado a ser uma criatura eminentemente sem caráter; e uma pessoa de caráter, de ação, deve ser sobretudo limitada. Esta é a convicção dos meus quarenta anos. Estou agora com quarenta anos; e quarenta anos são, na realidade, a vida toda; de fato, isso constitui a mais avançada velhice. Viver além dos quarenta anos é indecente, vulgar, imoral! Quem é que vive além dos quarenta? Respondei-me sincera e honestamente. Vou dizer-vos: os imbecis e os canalhas..."
No texto sobre Dostoiévski e o parricídio, logo no quarto parágrafo Freud escreveu e aquele leitor excepcional marcou com letra vermelha:
"Tampouco o resultado final da luta moral de Dostoiévski é louvável. Depois de lutar desesperadamente por conciliar as aspirações instintivas do indivíduo com as exigencias da comunidade humana, acaba submetendo-se a autoridade estatal e a eclesiastica, venerando o tsar e ao Deus dos cristãos e propugnando por um estreito nacionalismo russo, atitude a qual outros espíritos mais vulgares chegaram com muito menos esforço. Este é o ponto débil da magna personalidade de Dostoiévski: não quis ser um professor e um libertador da humanidade e se situou ao lado de seus carcereiros. O porvir cultural da humanidade terá muito pouco que agradecer-lhe".
EM TEMPO: Quando lhe devolvi os livros tive que reprimir esta frase cínica de Baudelaire: "Quanto mais se lê, menos se fode!!!"