"Quanto mais o opressor é vil mais o escravo é infame".
Chateaubriand
Viver não é simplesmente uma queda horizontal como apregoava frivolamente Cocteau durante uma de suas últimas crises e purgações opiáceas, mas uma queda em rodopio e em parafuso. Por mais nauseabunda e incômoda que seja essa caída, pelo menos -e isto temos que admitir - é ela que nos garante o estado de atordoamento e de embriaguez necessário para suportar as asneiras da existência.
Os olhos negros e fixos da dentista a um palmo de minha boca parcialmente destroçada! O sugador e os tufos de algodão não dão conta de absorver o sangue e a saliva que brotam de todos os lados de minhas mandíbulas como um pântano no período das chuvas... Apesar dos anestésicos que fizeram parte de meu nariz e do meu maxilar superior «desaparecerem», sinto os alfinetes de aço rosqueados que ela introduz delicadamente até o fundo do canal... Canal do Panamá... Canal de Corinto... Canal Vaginal… Canal da Mancha... Ainda não se estudou exaustivamente os sedativos, nem os anestésicos e tanto os derivados da cocaína peruana como os da papoula birmanesa continuam imersos numa espessa neblina de ignorância. Um tombo aos oito anos... um murro aos 19... um acidente de moto aos 22... uma cotovelada acidental aos 40... Traumatismos ósseos! Fraturas precoces! Depois, quarenta ou cinqüenta anos depois, as engrenagens sistêmicas regidas pela sede de entropia ou pelo instinto de morte, se encarregam de absorver a raiz e de engendrar o exército de banguelas que todo mundo conhece... E só quem já perdeu um canino ou um molar é que sabe o quão profundamente suas raízes estão encravadas na auto-estima, no amor-próprio e no narcisismo do sujeito. Sartre e Reich -segundo suas detratoras mulheres - caiam em depressão sempre que tinham que arrancar algumas de suas presas apodrecidas... E é conhecido o questionamento de Colete depois de uma destas sessões de horror:
- "Por quê não se pode simplesmente arrancar todos os dentes e substituí-los por jade verde?"
Teria sido ela a precursora dos implantes dentários? Você não lembra de Colete? Foi uma das escritoras francesas mais audaciosas. Apesar de lésbica, com quase 50 anos transou com seu enteado adolescente. Deformada pela artrite, era vidrada em gatos e gostava de provocar as feministas acusando-as de só merecerem duas coisas: o harém e o chicote. Apesar de um de seus maridos ter sido judeu, não deixou de incluir textos anti-semitas em seu romance Julie de Carneilhan. (White, E. 2001, pp 34 a 43.) Apesar do incômodo desta posição semi-horizontal, sinto que além das agulhas, há algo nesta dentista (um gesto, uma palavra, um olhar, uma ausência) que me tranqüiliza. Enquanto ela trabalha entre meus caninos pontiagudos, espio por entres seus dedos o fundo de seus olhos, os buracos de seu nariz, o movimento sutil de sua respiração sob a máscara impecavelmente branca... Quando faz um determinado movimento para apanhar o sugador uma de suas tetas roça saborosamente a parte posterior de minha cabeça. Regrido! Não porque tenha sido um filhinho-da-mamãe ou um merda mimado, mas porque uma teta é sempre uma teta e porque qualquer tipo de intervenção cirúrgica empurra o sujeito para a regressão! Alguns cirurgiões sabem disso. Existe no «ser» uma carência natural da qual ninguém se cura... Hibernar dois ou três dias... voltar a mamar... Talvez a dentista devesse ser sempre uma babá... uma amante... uma meretriz que em troca de um preço tabelado faz também um delicioso cafuné no cliente... cobre-o de afagos, de elogios, mentiras e promessas... Os minutos de boca escancarada parecem séculos! No consultório ao lado alguém ligou a tv para acompanhar a fúria dos argentinos nas ruas.
- Estado de Sítio un carajo!
Ouço uma mulher gritando cinco ou seis das mentiras sociológicas clássicas. Paralelepípedos nas portas de blindex dos bancos. Garrafas com pavio e gasolina na entrada do Ministério da Economia... A Casa Rosada está cercada... Demolir! Demolir todo! Tudo bem, mas é importante lembrar que não teremos tudo demolido se não demolirmos até as ruínas. A mesma polícia de sempre lá, em fila, com seus fuzis, defendendo os pilantras de turno... Um tiro... um corpo ensangüentado. O discurso de um deputado lambuzado de escárnio repete o mesmo bê-á-bá de séculos. Os eufemismos dialéticos não foram e não são privilégios apenas dos esquerdistas. Hijo-de-puta! Seu tipo é grotesco e seu discurso parece querer extorquir a verdade. Algo dentro de mim conspira a favor do caos! As mães da Plaza de Mayo aparecem com seus lenços encardidos e seu lero-lero pacifista... É evidente que passaram a vida toda tentando subornar a própria consciência, pois ninguém consegue ser pacifista depois de ter um filho assassinado e esquartejado! Por que perderam o fascínio pela vingança? Pobres mulheres que tiveram suas crias degoladas pelo Estado e os pedaços jogados ao mar. Os assassinos institucionais, como todo mundo sabe, não estão longe... Mas cada dia vai se concluindo que não há o que fazer com eles. Assassino? O que é um assassino? O resultado de uma história e de uma cultura falaciosa. Se a «verdade» é um cão que deve ser relegado ao canil -como dizia um debilóide Shakesperiano, em O rei Lear - a «mentira» -por sua vez- se parece cada vez mais a uma famigerada, sedutora e lúgubre puta que rodopia no centro do mundo...
Ainda com a boca anestesiada e cuspindo sangue, desço pelo elevador mastigando sentimentos e palavras. Atravesso a rua em zigue-zague, meio tonto, roçando involuntariamente os joelhos nos pára-choques dos automóveis. Alguém num carro oficial, com uma cara de mujique aperta a buzina e ameaça atropelar-me. Fico paralisado por um momento, depois caminho furioso em sua direção. Aproximo-me pelo lado oposto e fazendo um esforço imenso para movimentar a língua e os maxilares, cuspo um pote de saliva sanguinolenta em seu pára-brisa. Vejo o horror, o nojo e o estresse nascer dentro de seus olhos. Tem um impulso imediato e homicida em minha direção, simula saltar do carro para agredir-me com uma barra de metal inoxidável, mas só até o momento em que lhe encosto uma arma de grosso calibre nos miolos. Se mija todo e implora para que eu lhe permita seguir vivendo sua vida de merda… O trânsito está congestionado, os motoristas se encolhem e levantam os vidros dos carros. Retiro o dedo do gatilho e prossigo minha marcha, convicto de que esse mundo é uma legião de monstros, de bufões e de babacas... Em cada volante a caricatura de um verme... de um assalariado... de um poupador... de uma dessas ratazanas inventoras da fé.
Na calçada um sujeito me reconhece. Ouço que fala em voz alta para a mulher que o acompanha:
- Aquele cara ali é aquele que escreveu o livro sobre bestialismo…
Envaideço-me facilmente quando falam de meus escritos. A rua fica momentaneamente vazia depois é tomada por dois carros da polícia militar: um pequeno com a sirene ligada, o outro, um camburão com um homem com a cara colada às grades como se, antes de ir para a jaula quisesse olhar mais uma vez para o mundo, para as promoções que o CONIC oferece e para as meninas que à tardinha se enfileiram na penumbra dos viadutos... "O Direito Penal não para de remeter gente para as prisões enquanto a prisão não para de reproduzir a delinqüência" escreveu em algum lugar o careca Foucault...
Não escondo minha curiosidade e nem meu asco pelos assuntos policiais. Como é possível que nas mãos do Estado a força se chame Direito, enquanto que nas mãos do indivíduo se chame Crime? O preso me lança um olhar de fúria irremediável... o policial também. Paradoxalmente os presos e os policiais são provenientes sempre do mesmo meio, da mesma classe social, dos mesmos engendros, da mesma família e da mesma cultura esquizóide. Um vai ser policial... o outro vai transgredir a vida... Um vai proteger o sono e o capital dos ricos o outro vai estar permanentemente colocando-os em risco... E são esses «irmãos» que vão travar as intermináveis batalhas cotidianas, os tiroteios aqui e acolá, que vão alimentar as chamadas «páginas policiais» e finalmente dar credibilidade à frase do velho Chateaubriand: "quanto mais o opressor é vil mais o escravo é infame". Sinto que a anestesia está passando. Cuspo um coágulo de sangue na calçada. O preso esboça um tímido sorriso, como se estivesse se identificando com meu gesto ignóbil e deplorável. É possível que nem imagine o inferno que o espera. Ou seria um preso habitual, um facilitador de morticínios? "Os tímidos -escrevia Norman Mailer, falando das penitenciárias- se tornam mesquinhos e desleais; os corajosos cruéis. Porque quando bravos e fracos são obrigados a conviver, a coragem vira brutalidade, e a timidez, vileza. O casamento de um homem corajoso e de uma mulher medrosa só perde em infelicidade para a união de uma mulher valente e um homem medroso. O sistema penitenciário perpetua tais relações..."
O semáforo abre e os dois carros arrancam ao mesmo tempo. Atravesso o fétido estacionamento em frente ao Conjunto Nacional respirando o mínimo possível e me perguntando: que porra de civilização é essa que ainda precisa conservar milhões de seus integrantes atrás das grades? Uma voz grave que brota do fundo de meus arquivos literários sussurra-me duas linhas de V. Hugo: Durante seis mil anos, a guerra/ adoram-na os povos belicosos/ e o demiurgo perde o seu tempo fazendo as estrelas e as flores.
Ezio Flavio Bazzo
enquanto lia seu texto me lembrava de osama bin laden. em um de seus pronunciamentos ele disse: "se essa civilização ocidental defende tanto a liberdade de expressão, nós defendemos a liberdade de ação"! "de agulhas e de palavras" lembra esse movimento, para além do pensar com um martelo, ser um pensador-bomba em uma guerrilha cotidiana contra mocinhos e bandidos. grande inquisidor da multidão silenciosa. também tive um delírio com a teta da dentista. a imaginei como patricia hearst, a milionária estadunidense e neta do cara que inspirou o "cidadão kane" de orson welles, que expandiu a consciência e suas paixões, temporariamente abraçando o ideário de seus sequestradores, o Exército Simbionês de Libertação.
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