quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Encontro de dois poetas no limbo


Cassiano Nunes morreu quatro anos, cinco meses e dois dias após a morte de Oswaldino Marques. Duas figuras respeitáveis da literatura e da poesia brasiliense. Apesar de em vida nunca terem se relacionado lá muito amistosamente os acontecimentos da existência de um e de outro guardam semelhanças, nexos e diferenças curiosas. Por exemplo: ambos morreram com 86 anos e de câncer. Oswaldino morreu no meio da tarde de um dia 13, uma terça feira e foi cremado num dia 15. Cassiano morreu no meio da tarde de uma terça-feira, também de um dia 15. Ambos eram professores aposentados de literatura na Unb. Os dois nasceram em cidades portuárias. Oswaldino em São Luis (MA) e Cassiano em Santos (SP). Ambos foram trazidos para a Universidade de Brasília na década de sessenta e por dois outros escritores. Oswaldino foi trazido por Ciro dos Anjos e Cassiano por Drumont de Andrade. Oswaldino demitiu-se para não fazer o jogo da ditadura militar, Cassiano aceitou o cargo para que a universidade não fechasse. Oswaldino deu aulas de literatura na Madson Wisconsin (USA) e Cassiano na New York University. Cassiano gostava de traduzir àqueles que considerava grandes, Oswaldino verteu para o português nada mais nada menos que W. Blake e que T.S. Eliot. Se Oswaldino tinha quase uma obsessão pela obra de Cecília Meireles, Cassiano não a tinha menos pela obra de Monteiro Lobato. Ambos viviam em casas repletas de livros e quase transformadas em bibliotecas. Oswaldino foi marxista e ateu radical até a morte. Cassiano foi liberal e idealista até o último momento. Oswaldino optou por um funeral discreto e laico, foi cremado com a presença apenas da família. Cassiano. Sem familiar algum por perto, não dispensou o ritual tradicional da capela e da lápide. Como dizem que os poetas quando morrem vão para o limbo, foi lá que esses dois homens de letras se encontraram na última semana. Quando Cassiano surgiu do meio das nuvens para a entrada do limbo, deu de cara com Oswaldino que, enquanto ouvia Lamentatione, de Haydn rabiscava uma ou outra página de seu conhecido livro Acoplagem no espaço. Olharam-se desconfiados e foi o Oswaldino quem quebrou o gelo de tantos anos.
Osw. – Seja bem vindo camarada Cassiano!
Cas. – Olá Oswaldino. Que grata surpresa! Continuo chegando sempre depois de voce...
Osw. – A ordem dos fatores não altera o produto. Retrucou Oswaldino, para em seguida perguntar: qual foi a causa mortis? Cas. – A mesma que te trouxe para cá. Câncer.
Osw. – Então a medicina continua a mesma baboseira inútil? Cas. - Tudo igual. Quimioterapia aqui, cobalto ali, exames acolá. Acho até que isso já faz parte de uma espécie de extrema-unção laica.
Osw. – Curiosamente acabamos sempre junto com nossas poupanças e economias... E as multinacionais dos medicamentos estão sempre lá, de plantão na sala dos oncologistas.
Cas. – Pois é. E o pior, é o desgaste que se é obrigado a ter a vida inteira na busca ilusória de um bom médico, ou – como dizia Câmara Cascudo – na tentativa de escolha entre os gatunos inteligentes e os jumentos honestos.
Osw. – Alguma novidade nesses quatro anos? Algum novo poeta?
Cas. - Tudo igual. O tédio tomando conta até das pedras. O mesmo lirismo e o mesmo cinismo da literatura e da poesia. De vez em quando um chato publicando um poeminha aqui, um cineasta fazendo um filminho ali, os jornais fazendo uma resenhazinha acolá ou reeditando os antigos cadernos literários. Mas nada transcendente. Ah, sim, o governo da Venezuela está mandando livros "revolucionários" para as escolas do GDF e concluíram, finalmente, o Complexo Cultural da República. Está lá, como uma imensa e albina tartaruga imobilizada pela burocracia e pela inércia nacional. Como demorou 45 anos para sair do papel é de se esperar que demore outros 45 anos para ter algum sentido. E por falar em burocracia, o governador atual baniu por decreto o gerundismo. Mas veja que tragédia, quando a noticia se espalhou, 99% da população descobriu que nem sabia de que se tratava. Novidade mesmo é que abriram um novo Beirute, lá na 107 Norte, bem em frente a uma igreja...
Osw. – Deus e o Diabo na Asa Norte! Num lado a cachaça e no outro o ópio...
Cas. - Pois é, agora vamos ver quem é que catequiza quem. Olhando para os lados Cassiano perguntou: que tal este lugar? O Papa não havia excluído o limbo?
Osw. – Excluiu, mas só no papel. Com todas minhas ressalvas com relação aos papas e ao Vaticano, penso que isto aqui deve ser extinto mesmo, pois é mais tedioso que Brasília. Você que gostava de ir a Pirinópolis só para ler Proust, aqui vai poder ler até mais de uma vez a obra inteira desse chato. Logo que cheguei aqui procurei, sabe por quem? Por Samuel Rawet. Sabe onde ele está? No inferno. Drumond, Vinicios e outros vaselinas estão hibernando no paraíso, mas Rawet, como era de se esperar, foi lançado nos quintos dos infernos... Cassiano, ao ouvir esta palavra pela segunda vez, moveu-se involuntariamente na cadeira de nuvens onde estava sentado e Oswaldino, perspicazmente, aproveitou para perguntar-lhe: sobre a experiência de seu funeral?
Cas. – Me acovardei. Não quis ser cremado como você. Cheguei até a pensar nessa hipótese, ela me parece chique, mas o forno e o fogo me deram mais medo que o caixão e que a tumba. As três ou quatro horas que fiquei exposto naquela capela foi uma experiência importante. As pessoas iam entrando, algumas sérias, outras transtornadas e visivelmente angustiadas pelo contato sempre inoportuno com a morte. Vinham até meu cadáver, rezavam alguma oração e se iam. Um impulso sádico dentro de mim ia fazendo-me pensar: a esse arrumei um bom emprego; esse aí "papei" várias vezes; a esse aí dei um empurrão para que sua tese de mestrado fosse aceita; esse também já "papei"; a esse emprestei uns trocados, esse me roubou uma câmera fotográfica, esse quis transformar-me num pai substituto; esse me afanou três livros etc. Por falar em livros, qual foi o destino de tua biblioteca, Oswaldino?
Osw. – Continua intacta, como uma relíquia, no mesmo lugar. Tentei várias vezes fazer uma doação, mas as universidades não manifestaram o mais mínimo interesse. Hoje tenho consciência que querer fazer com que os outros leiam ou que "amem" os livros é não apenas uma idiotice, mas também uma forma sutil de impostura. E a tua?
Cas. – Também está lá no mesmo lugar. Os jornais estão fazendo o maior alarde a respeito de seu destino, mas tudo conspira para que acabe dentro de caixotes no porão de alguma universidade ou nos banheiros de alguma Secretaria. Estão até falando em trinta mil exemplares, quando na verdade não chegam a vinte. Matérias repetitivas dizem que fui o maior poeta da cidade, que vou fazer a maior falta, que era, além de simplório a erudição ambulante etc, etc.
Osw. – Ah, disseram as mesmas bobagens sobre mim. Só sabem dizer isso dos poetas e mesmo assim, só depois que os enxergam mortos. Uma espécie de prestação de contas e de exorcismo da culpabilidade cristã. Um ou dois meses depois e tudo cai no esquecimento. Mesmo daqui do limbo é frustrante ver que ninguém se atreve a fazer verdadeiramente uma crítica e um estudo profundo de nossa obra. Não compreendem que, apesar de mortos, essa puxação de saco e essa ladainha de misericórdias não nos interessam mais para nada.


Ezio Flavio Bazzo

Um comentário:

  1. limbo-brasília... de elefantes brancos como a ponte jk e o hospital de santa maria à "imensa e albina tartaruga". de vizinhos de partamentos que não se conhecem à escritores que não se leem. da harmonia dos butecos ao lado de igrejas, nas periferias, às tumbas de concreto, que expulsaram as escolinhas das entre quadras por causa do barulho das crianças, no plano piloto. o que movimenta esta cidade? mesmo sem os ter conhecido, gostaria de ter tomado umas com cassiano nunes e oswaldino marques. porém, agora eles estão libertos. e nós? contiunaremos a ouvir uma orquestra sinfônica alemã tocando samba, ou, faremos deste paraíso para a velhice, um inferno maravilhoso para a nossa e as futuras gerações?

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