No boteco da esquina, como já lhes disse várias vezes, de madrugada, costuma passar, além daquele vendedor de porcarias chinesas, de baseados e até de empanadas porteñas, um ou outro mendigo (morto de frio e de fome) e um poeta, ainda daqueles do tempo dos mimeógrafos, recitando seus poemas de mesa em mesa, elogiando algum "artista" ou alguma autoridade local, queimando incenso à cidade, com suas esquinas inexistentes e recitando trechos de Cassiano Nunes ou de Clarisse Lispector... para aquele bando de bêbadas e de bêbados surdos, reacionários e melancólicos que ainda discutiam sobre aquele ministro negro, que foi banido do mundo, depois de acusado de ter enfiado a mão entre as coxas de uma ministra negra; e em seguida conduziam o papo para o velho Brizola e para o petróleo. Ah! O petróleo... É NOSSO OU NÃO É? E a ditadura daqueles tempos e a ditadura de agora?... E a margem equatorial, lá no Amapá? A Marina permitirá que se explore o petróleo que há lá, ou não? Se sim, como se justificaria para a adolescente sueca? Ah! A Greta Thunberg... Descendente dos druidas... E o chandão? O Trump mandará alguém para cá, para lhe colocar uma coleira, ou não? E os "espiões" russos? blá, blá, blá... E o mendigo, que ontem esfaqueou a outro ali na rodoviária? E a paranóia generalizada??? Metalinguagem pra lá e meta linguagem pra cá...
Ontem, quando o poeta reapareceu, um dos bêbados mais exaltados foi logo lhe gritando: Cale a boca! Hoje não! Não me venha outra vez com essas merdas! Ficar recitando poesias enquanto Israel avança em seu genocídio é, não só ridículo, como fazer parte daquele horror e ser cúmplice... Você não lembra do Adorno? Daquele judeu da Escola de Frankfurt que declarou: Depois de Auschuwitz é nojento seguir fazendo poesia??? Que diria ele, agora, quando, ironicamente, não são os alemães, mas os próprios judeus, os genocidas?... A propósito, Qual é a diferença entre Auschwitz e Gaza? Entre Dachau e a Faixa de Gaza? Entre a cumplicidade do mundo diante do holocausto e a cumplicidade de agora diante de Gaza?
Ora! Vá dormir! Enfie seus poeminhas no rabo e prepare-se para o que virá após o extermínio dos palestinos...
Na beira da calçada, quase dentro da penumbra, um casal de estrangeiros tocava e cantava Manhã de carnaval...
O poeta entendeu de imediato que aquela não era uma boa noite para tertúlias literárias. Enfiou os folhetos na bolsa de couro que levava às costas, conferiu se o canivete estava bem posicionado na algibeira e desapareceu no meio da madrugada gelada, atento a um e outro latido vindos dos apartamentos semi-desertos...

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