sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Os rios, os cortiços e o pensamento mágico...


"O espírito de Deus movendo-se sobre as águas, foi tomado como 'a grande evaporação que ocorreu assim que os sólidos começaram a cristalizar-se'..." 

Gustav Jahoda 

(IN: A psicologia da superstição)

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Minha correspondente de São Paulo enviou-me imagens da enchente de ontem nas ruas daquela cidade. Imagens feitas da cobertura de um chalé, edificado na parte mais endinheirada da cidade, herdado e habitado por ela, que até ja traduziu alguns capítulos do Das Kapital. Primeiro seu avô, depois seu pai, foram duas aves de rapina competentes e muito bem relacionadas, o que possibilitou que se tornassem milionários no meio e às custas daquela Ilíada de fodidos e de indigentes.

As águas de janeiro desciam em fúria por aquelas avenidas e becos, levando ratos, seringas usadas, máscaras, cachimbos com restos de crack; mentiras e dejetos de todos os tipos. Uma reprise dos últimos acontecimentos na Bahia e em Minas Gerais.

Se a história, segundo o Apostolo Marx, se repete pela primeira vez como tragédia e pela segunda, como farsa, - dizia ela - como será lá pela terceira e oitava vez?  

Onde está meu 18 Brumário?

E a tendência, não só dos "gestores" mas até mesmo das vítimas, dos que viram suas tralhas sairem boiando sem rumo, é culpar os rios. As chuvas. A estação. Uma peroba que os kaingangs derrubaram no ano passado; o alinhamento dos astros; Netuno na garagem de Vênus e, por fim, a falta de orações e de sacrifícios. Os deuses estariam chateados, frustrados, decepcionados com a putaria desmedida do mundo... E quando os bombeiros chegam com pompas, naqueles caminhões fantásticos, cheios de luzes piscando, com aquele espírito cristão transbordando e com três ou quatro repórteres pendurados nos estribos, com suas respectivas câmeras televisivas.., os flagelados regridem. Tornam-se crianças outra vez. Aparecem vestidos com o uniforme de alguma fábrica, de algum supermercado, de alguma confraria de lunáticos, com rosários, estatuas, bíblias e cachorros no colo, olhando para cima, porque acreditam que o portão do reino dos céus está naquela direção e sempre prontos para dar ao sobrenatural o 'benefício da dúvida'. E agradecem a Poseidom por, pelo menos, não serem águas do Rio Tietê! Contam que perderam as únicas duas xícaras que tinham e choram para o câmera-man que foi enviado para lá, unicamente para registrar as lágrimas (o vale de lágrimas), e mergulham, como crianças, no pensamento mágico e no fosso das superstições!

Tudo se resolverá! A vida é mais importante que nossa geladeira e que nossos colchões! Se lá na Bahia o povo coloca todas as esperanças nas mãos de Iemanjá, e em Minas Gerais, nas mãos de Nossa senhora da Piedade (aquela do Aleijadinho); aqui em São Paulo deixamos tudo nas mãos de nossa padroeira: Nossa senhora da Conceição! E o rio haverá de voltar a seu leito! O prefeito é muito humano e, com os milhões que recebeu ontem, haverá de reconstruir nossos cortiços, e no mesmíssimo lugar! Sim, aqui nas margens, porque amamos admirar esse rio, a bruma que sobe das espumas; escovar nossos dentes nessa água cheia de detritos... Ver o espírito de Deus movendo-se sobre as ondas revoltas... Para a ralé, doutor, até as enchentes têm lá o seu encanto. E o povo brasileiro, que tem um coração bondoso demais, haverá de nos sufocar e de nos intoxicar com tantos cobertores e tantas cestas básicas.

Sim, minha senhora, mas e o ano que vem? Quando janeiro voltar? Quando os Kaingangs derrubarem outra peroba? Quando Netuno se alinhar novamente com Vênus? E quando os deuses estiverem novamente de saco cheio e na fase maníaca? E quando os cortiços já estiveram ruindo e o prefeito estiver esquiando nos Alpes?

Ah, doutor, não vamos ser pessimistas! Esta aqui até que está um pouco melhor que a de 1929! Queremos a volta do Maluf! Ou pelo menos do Quercia! Do Collor! Do Fernando Henrique! Do Lula! Da Dilma! Do Getulio Vargas! Do Prudente de Morais! De algum imperador português! (uma vizinha se intrometeu na conversa palavra lembrar daquele macumbeiro do Maranhão). Ah, sim: queremos a volta do Sarney! E no ano que vem a gente vê como é que fica! A gente deixa tudo sair boiando por aí novamente. Nós mesmos passamos a vida inteira boiando... A vida é um boiar permanente! Um dia a história haverá de se repetir, nem como tragédia e nem como farsa... mas como glamour e como um orgasmo interminável...  ( Falou em orgasmo, como se estivesse falando da Santíssima Trindade ou de uma sincope!)



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