domingo, 8 de abril de 2018

Com os pés firmemente apoiados sobre as nuvens...


A cidade amanheceu de ressaca tomada por uma espécie de transtorno bipolar. Os apoiadores de Lula deprimidos, seus adversários em euforia e os anarquistas visivelmente seduzidos pela velha jararaca que, no meio de uns bons tragos dessacralizou e profanou quase tudo em seu derradeiro discurso. Que ressuscitou uma defunta, que desafiou a justiça, que fez preponderar o seu relógio e o seu cronograma sobre o dos juízes e o da policia, que homenageou um por um seus velhos e cachaceiros amigos sindicalistas, que fez os padrecos ouvirem um funk no lugar do miserere mei e que incentivou as invasões, as fogueiras de pneus, a insurgência e a rebelião permanente... E mais: que relegou o indivíduo e o corpo a um nada quando afirmou que ele próprio era apenas uma idéia. 

De vez em quando fixava seu olhar ébrio nos jovens da primeira fila como se quisesse alertá-los: "e não se iludam, tanto a impotência como o poder corrompem"... E ia compulsivamente de um lado a outro enquanto falava tentando fazer aquele bando de milenaristas que o bajulava entender que nada do que está aí merece respeito, que a condição humana é degradante, que é tudo circo e embromação e que a república é um bordel de beira de estrada. Oxalá, do xilindró, consiga fazer um relatório ou um ensaio bem mais detalhado...  

Ontem à noite enquanto ele era levado para a cadeia, uns choravam na penumbra dos botecos outros acendiam seus foguetões com a brasa dos charutos.  Duas ilusões!  Duas religiões! Como viver sem ilusões? Sem religiões? Eis aí o ópio do povo. Ou melhor: a cachaça! É necessário inventar algo para mascarar o dia-a-dia quase miserável. Se a prisão é ainda um signo de subdesenvolvimento, a obsessão pela liberdade é uma impostura mais ou menos metafísica, mais ou menos filosófica. Liberdade? O que é isso? 

Lula e sua garrafinha pode ser o exemplo mais fulgurante de alguém que saiu do inferno, flertou por um bom tempo com um "paraíso" e, de forma quase voluntária, descambou novamente para a penúria. E essa é a trama imutável de um complexo religioso. O ciclo maldito de uma neurose messiânica. A crença generalizada de que o martírio voluntário será, algum dia, reconhecido e premiado. O resultado de uma culpabilidade incurável e de uma auto-sabotagem perversa... Uma civilização que ainda não superou o fanatismo, a prisão, a cadeia, o calabouço e a vingança, é necessariamente uma civilização cretina e desprezível... 

Quem me dizia isso nesta manhã sem sol era o mendigo K, acordando numa parada de ônibus quase em frente ao Ministério das Comunicações... Enquanto falava ia remexendo numa mochila imensa que lhe servia de travesseiro. Retirou dela duas folhas impressas que passou a ler em seguida e cujo título era: A cortesã que idealizava a transparência da pós-modernidade.


A pequena valise encostada às pernas era um truque para, se fosse o caso, poder cochilar sem ser roubada. O último ônibus não tardaria. Afastou-se um pouco para que me sentasse a seu lado e, na primeira oportunidade, desatou a falar. Já morei aqui. Desapareci durante cinco anos. Vim no velório de meu pai. O velho foi enterrado hoje e já estou caindo fora. Tenho uma incompatibilidade biológica com essa gente que fala cochichando, que quer saber demais, que passa a vida espiando por detrás das persianas e que acredita realmente ter alguma coisa a ver com o suposto assassinato de Cristo.
Tomei a decisão de zarpar daqui, no dia em que ouvi dois velhos fazendeiros conversando num ônibus que ia de Barbacena para Tiradentes. Um ensinava o outro como envenenar os cachorros de um vizinho. Esse mesmo sujeito referiu-se a uma vaca que não queria amamentar fazendo uma analogia com sua própria esposa. Achei demais. Arrumei a mala e saí daqui para sempre. Essa gente vive só esperando que as piores desgraças do mundo despenquem sobre suas cabeças. Hoje odeio ouvir falar em cidade antiga, barroca ou colonial. Esse palavreado me remete imediatamente à penumbra, à umidade, ao cheiro de excrementos, a um ardor no nariz e à deslealdade. O azul e o branco, o rococó das beiradas, os pregos enferrujados. Por todos os lados de minha infância havia fumaça de incenso litúrgico. Rezas, a espera da morte. Os mesmos telhados, as mulheres frígidas com aqueles mesmos e odiosos corpos de antas. Aquele passo de morte subindo as ladeiras e as escadarias, junto às paredes. A benevolência cristã e espírita. Pela tarde, quando começava a escurecer, todos os sinos badalavam ao mesmo tempo, era como se batessem literalmente dentro de meu cérebro. Aquilo sim que era solidão. A pior solidão é aquela que se experimenta no barulho. As persianas semi-abertas. Os trincos dos janelões com seus ruídos sempre iguais. Meu pavor durante a noite era de ser picada por um daqueles besouros que transmitem a doença de chagas. Diziam que o veneno ou sei lá o que ia diretamente para o coração. Minha casa, de tantos mortos nas mesas e nas paredes parecia um verdadeiro mausoléu. Todas aquelas caras e aqueles olhares macabros me vigiando. Sempre voltados para meus passos, meus sonhos e meus desejos. Aquelas malditas lâmpadas de 40 wats! Fracas, cor sépia, deprimentes. E as pedras. Só os interiores das igrejas me eram mais odiosos que as pedras. A infelicidade humana está diretamente ligada às pedras, as pedras e ao ferro. As dobradiças imensas das portas rangiam. Não havia óleo que resolvesse. O pai bêbado chegando depois da meia noite e aquele ruído macabro. E todo mundo tirando o chapéu, riscando uma cruz no peito e beijando os dedos diante das igrejas, da cruz e do calvário. Quando a noite já havia chegado, todos tinham que fechar as portas, as janelas, as cortinas. Ninguém sabe realmente por que, mas era uma espécie de código desta gente e desta cidade. O pretexto eram os mosquitos. Realmente parece que o cheiro colonial atrai esse minúsculo animal. O cheiro do torresmo e da banha de porco talvez atraiam essa praga para o interior das casas seculares, com seus barrotes e suas vigas infestadas de cupins. Não há fé que de jeito nos cupins. Mas a fé é tudo para esse povo. Dizer colonial e barroco é como dizer fé, submissão, calos nos joelhos, velas. É como revigorar a certeza de ter cravado pelo menos um daqueles pregos que dilaceraram os pés do nazareno. O inferno, a dor, o estigma da maldade, o apocalipse levado às últimas conseqüências no imaginário infantil, principalmente das meninas. O câncer que virá de uma maneira ou de outra, minha filha, - ouvia minha mãe dizendo – é melhor que já nos encontre nos braços da Imaculada Conceição. Demorei a dessacralizar a imagem que tinha de minha mãe, essa pobre mulher que perdeu a vida nesse inferno e que agora, como viúva, terá sua existência piorada: as tetas amarradas, a xota cabeluda e o rabo como se estivesse anestesiado. Já lhe disse que vim ao enterro de meu pai. Quando o vi morto, não senti nada. Absolutamente nada. Da infância lembro apenas suas sobrancelhas enormes e brancas e aquele seu olhar libertino e incestuoso, mas ao mesmo tempo de cão repressor da Opus Dei. Tenho também uma leve lembrança de seu catarro. Escarrava de madrugada numa baixela de estanho. Tinha amigos odiosos. Daqueles que ficavam em pé nos botecos idolatrando uma garrafa de pinga ou de cerveja, ou então de cócoras num posto de gasolina, em silêncio olhando para o nada, como se também vivessem embriagados pela solidão. Odiava com todo meu ser às mulheres que passavam o dia inteiro lavando as calçadas e as paredes, os lençóis e as toalhas. O cheiro de detergente associado à urina dos cães me dá náuseas até hoje. Às nove horas da noite, como já disse, todas as casas estavam religiosamente trancadas. Uma exceção aqui e outra ali, onde se podia ver a claridade de uma maldita lâmpada de 40 wats. Diz-se wats ou volts? Muitas, muitíssimas vezes, acordava lá pelas quatro da manhã com o canto curto e seco de um galo que não havia sido vendido na feira e que enfiava o pescoço pelas grades e fazia sua Ode à melancolia. Passava o resto da noite comovida, numa espécie de cumplicidade com aquela pobre ave tentando compreender a quem dirigia seu derradeiro lamento. Mas hoje não tenho mais nada a ver com isto. Sou cortesã – nome pomposo para dizer puta – longe daqui. Amo a modernidade, a pós-modernidade, o porvir que, tenho certeza, dinamitará todo esse entulho do passado. Amo os prédios e as casas de vidro, transparentes, cheios de luz e de lealdade.
Enquanto o motorista checava sua passagem arrastou-me para um lado e preveniu-me: não creia demasiadamente em minhas palavras. Lembre-se daquilo que a psiquiatra Nise da Silveira dizia: "O homem é mau, mas a mulher é perversa. Mulher sabe ser ruim como o demônio. Uma mulher engana o diabo. Duas enganam o inferno inteiro". E partiu.
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EM TEMPO: Enquanto ele ia lendo o texto e eu o ouvia atentamente aproximou-se de nós um outro mendigo, aos farrapos e completamente bêbado que quase nem conseguia manter-se em pé. O mendigo K olhou-o com um certo desprezo e, paternalmente lhe disse: "camarada, o álcool vai matando lentamente!" Ao que o outro lhe respondeu ao pé da letra: "Não tenho pressa!"
E por falar em álcool, muita gente está querendo ironizar o Lula por ele, lá na cerimônia do adeus, na ante-sala da cadeia estar "tomando uns tragos". Ora. Quem é que conseguiria suportar um circo daqueles sem estar embriagado? Ele e seus camaradas como bons proletários, com cachaça, mas aqueles padres, aqueles políticos, aquelas madames, aqueles coroinhas disfarçados de militantes, aqueles pretensos doutores da LEI, aquela turba que lhe esfregava os colhões, com certeza havia deglutido, pelo menos, umas gotas de clonazepam. Ora! Qual é o problema? No fundo, é tudo a mesma coisa! O problema, evidentemente, se os carcereiros forem sóbrios e abstêmios, vai ser a abstinência atrás das grades... 

8 comentários:

  1. A necessidade de se construir mitos religiosos para mascarar a realidade miseravel...a auto-sabotagem pela culpabilidade...muito interessante ...visão lúcida a respeito do ser humano.Obrigado por mais essa reflexão.

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  2. http://www.granma.cu/mundo/2018-04-07/hablo-lula-este-sabado-tras-misa-por-su-difunta-esposa-07-04-2018-14-04-51

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  3. http://www.lemonde.fr/ameriques/article/2018/04/07/au-bresil-lula-annonce-accepter-d-aller-en-prison_5282289_3222.html

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  4. http://www.liberation.fr/planete/2018/04/07/lula-emprisonne-ses-partisans-restent-mobilises-contre-une-injustice_1641831

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  5. https://www.clarin.com/mundo/polemico-audio-avion-llevaba-lula-da-silva-curitiba-tira-basura-ventana_0_ryMqcX_iz.html

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  6. https://www.youtube.com/watch?v=TCftvIbLaA4

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  7. https://www.youtube.com/watch?v=zXlDtKlAo8Q

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  8. Fantástico! Eis que quase dez anos depois ressurge a cortesã que idealizava a transparência da pós-modernidade.

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