quarta-feira, 8 de novembro de 2017

A ventania de ontem a noite e o sentido trágico da vida...

Não precisa nem ter lido Santo Agostinho, Kierkegaard, Unamuno ou Freud, para ter consciência do que é o tal 'sentido trágico' da vida. Basta sair por aí e falar com qualquer estranho na rua. Parece haver algo de sinistro e de apocalíptico espiando não apenas atrás das córneas, mas atrás de todas as coisas. Como se houvesse uma pressa em acabar. Como se, contra-fobicamente, se desejasse ir logo ao encontro do fim... 
O papo hoje, aqui no coração da república se concentra todo nos comentários sobre a ventania que ontem à noite se abateu sobre a cidade. Um radialista chegou a dizer que parecia um tsunami de vento. Árvores caídas por todos os lados, esgotos entupidos, telhados desfeitos, vidraças despedaçadas, uma escuridão de ponta a ponta... pequenos besouros amassados nas soleiras... Para frustração dos fofoqueiros e dos noticiários, não morreu ninguém. Mas Todo mundo quer contar e aumentar um pouco o que viu, colocando sempre em sua história boa parte de inverdades, mentiras, invenções e fantasias enigmáticas com a ilusão de diminuir o tédio cotidiano e de dar-se um pouco de importância. Como se quisesse que a turba o apontasse na rua e dissesse, com admiração: Aquele ali viveu o Caos e está vivo! Surfou na tempestade e está intacto! Bobagens infantis! Uma ficção que nos vêm de longe, ainda do tempo das cavernas...
O mendigo K falava futilidades com o pessoal da guarda presidencial que retirava pedaços de árvores das ruas que ficam ao redor do Palácio. Contava aos guardas que o vendaval havia começado exatamente às 3:15 da madrugada e que deixou seu barraco em pedaços. Que ficou todo esse tempo no meio do nada e acuado ao lado apenas de um saco de latas vazias e de um armário feito com caixas de ovos mas que também levitou e sumiu. Falava entusiasmado sobre a beleza e a transcendência do vento e da tempestade. Aquela água gelada e aquela falta de ar! Haveria alguma coisa mais fascinante do que uma ventania como aquela no meio da metafísica insinuante da madrugada? Perguntava.  Haveria alguma coisa mais fascinante que as rajadas que assobiavam nos postes e no tronco dos pequizeiros como se estivesse ameaçando limpar radicalmente a área infestada por todo tipo de hipocrisias e de infâmias? Os guardas o ouviam com curiosidade até que ele passou a relatar histórias e estórias de um realismo fantástico que teria presenciado das 3 às 4 da madrugada. De um baú repleto de dinheiro - por exemplo - que teria despencado das nuvens ao seu lado se despedaçado na queda e o dinheiro levantado voo em uma revoada parecida a de morcegos. Disse que no meio das cascatas de água e vento surgiu o padre Dom Bosco - aquele padreco que profetizou que nesta cidade haveria de brotar pão-de-ló e melado dos barrancos - e que fazia um esforço imenso para não deixar que o vento lhe levantasse a batina e lhe exibisse as nádegas... Depois apareceu JK e o Niemayer, sob a chuva, naquele passo moribundo e suspeito da senectude, um acusando o outro de ser responsável pelos descaminhos desta urbe. Os guardas que cortavam árvores com serras elétricas continuavam ouvindo-o mas já meio céticos. Jurou com uma certa alegria e fascinação que sua mulher havia sido levada pelo vendaval agarrada ao único bujão de gás que conseguiu comprar em vida e que os 3 volumes da Divina Comédia que estava lendo haviam ficado encharcados sob o colchão...
Os guardas receberam uma ligação telefônica de um alto escalão da república, desligaram imediatamente as moto-serras e puseram-se a olhar com um certo gozo para as nuvens que, lá por sobre as montanhas de Goiás pressagiavam e prognosticavam novas desgraças...  
Brasília parece gozar, mesmo que secretamente, quando se abate sobre ela um diluvio ou mesmo apenas uma tempestade, quando os carros são levados para os esgotos, o metrô e os ônibus não circulam, quando todo mundo aproveita para não ir enxugar gelo nos Ministérios e dormir. Dormir! O sono, todo mundo sabe, é o prenuncio da morte. Enfim, há um gozo por aqui quando a cidade, como diria Garcia Marquez: torna-se um povoado sem ninguém, com as casas fechadas e em cujos quartos ouve-se apenas o surdo fervedouro das palavras pronunciadas com ódio...

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