domingo, 29 de março de 2009

LULA y sus ojos negros


Apesar dos sensacionalistas quererem alongar e turbinar a repercussão sobre a frase do Lula culpabilizando os homens brancos e de olhos azuis pela crise financeira internacional, ela vem sendo vista mundo-a-fora mais como um folclore sul americano do que como qualquer tipo de neoracismo ou de alguma outra teoria inédita e transcendente de nosso Presidente. Em último caso, - admitindo que a frase em questão tivesse alguma substância - estaria mais para a superstição e para feitiçaria de que para ideologia, pois não podemos nos esquecer que no Burundi, na Ruanda, Tanzânia etc., até hoje sacrificam albinos – por exemplo. A ausência do pigmento na pele, nos cabelos e nos olhos os torna suspeitos a priori, da mesma maneira que os ruivos foram durante muito tempo, considerados filhos de Caim etc. Enfim, a tal frase foi apenas uma bobagem como tantas das que quando se solta lá no boteco ou lá no sindicato, no meio daquela peãozada iletrada, causa gritos de frenesi e de admiração. Só voltei a pensar nisto hoje, quando me deparei com a estampa de um Cristo na parede da padaria da esquina e logo depois com um pittbul na rua, ambos de olhos azuis. Bobagens! A pulsão para a rapina é geral. Há gatunos por todos os lados com olhos de todas as pigmentações e com a pele de todos os matizes: brancos negros, amarelos, albinos, vermelhos, cor de rosa, lilás... O presidente (con sus ojos negros) sabe que os olhos são apenas os faróis da pele e que a pele é só um invólucro dentro do qual ocultamos todas as nossas infâmias, traições e misérias. E depois, não há quem não se lembre do texto que está lá na A Gaia Ciência: “Se o laço dos instintos, este laço conservador, não fosse tão mais poderoso do que a consciência, se não desempenhasse, no conjunto, um papel de regulador, a humanidade sucumbiria fatalmente sob o peso de seus juízos absurdos, de suas divagações, de suas frivolidades, sua credulidade, isto é, do seu consciente; ou melhor, há muito tempo teria deixado de existir sem ele”.

Ezio Flavio Bazzo

terça-feira, 24 de março de 2009

A mendiga, o arrombador de automóveis e a crise


Apesar de estar metafórica e literalmente cagando para a Crise Internacional sinto-me atraído pelos discursos, pelas previsões, pelas estatísticas, pelas medidas de emergência dos governos e pela mentirada globalizada que toma conta da mídia e de tudo. A idéia otimista e beata atribuída aos chineses de que sempre se sai fortalecido da crise é uma idiotice. A grande maioria se despedaça, entra em desvario e sucumbe. Mas isso é secundário, o que realmente a tal crise nos fez perceber é que se excluírem os bancos, as bolsas de valores e as fábricas de automóveis do mundo mergulharemos rapidamente na barbárie. Ou não?

Meu termômetro sobre a situação real do mundo é a mendiga que está lá na rampa da Catedral há uns quinze anos e o arrombador de automóveis que atua no Setor Comercial Sul há pelo menos uma década. Estão muito bem. Os dois estão saudáveis e tranqüilos. Ela, sempre com a mesma serenidade, a pele quase transparente. É verdade que com o advento da sesta básica engordou uns nove quilos, mas mesmo assim seu desempenho corporal é invejável. Um dia vi e ouvi uma turista elogiando-a por não ter nenhuma ruga e ela lhe respondeu com amabilidade: - tenho sim, minha senhora, uma única, mas passo o dia inteiro sentada sobre ela. Quanto ao arrombador de carros está mais elegante de quando o conheci. Os cabelos já lhe ficam grisalhos, mas a elegância e a agilidade não se comprometeram em nada e sabe mais sobre o Código Penal que muitos de nossos delegados e juízes. Já conseguiu fazer uma pequena fortuna. Está satisfeito. Até ele acha que a crise é uma tramóia do sistema financeiro e quanto a última idéia do Obama de obrigar os mafiosos internacionais a comprarem Títulos Podres, ironizou dizendo: - seria o mesmo que se os vendedores de uma feira, a beira do colapso, propusessem aos seus clientes que comprassem frutas e legumes podres para salvá-los. Foi ele que me confidenciou que gostaria imensamente que tanto os bancos como as fábricas de automóveis fossem absolutamente à ruína. Um mundo com charretes e carroças seria muito mais charmoso. E que em cada esquina volte a se ver aquele antigo usureiro, o agiota barbudo dos velhos tempos (o avô de todos os banqueiros) sentado em sua mesa rapinando e emprestando dinheiro a quinze ou a vinte por cento. (le névrotique a des problèmes, le psychotique a des solutions)

Ezio Flavio Bazzo

domingo, 22 de março de 2009

A saga das candangas invisíveis


Fui ao Museu Vivo da Memória Candanga – lá pelos lados dos motéis – para assistir ao curta metragem: A saga das candangas invisíveis, documentário sobre as mulheres que, supostamente, teriam sido “mulheres da vida” ou putas, no princípio da construção de Brasília. Foi um dos melhores programas que poderia ter feito neste sábado. O auditório estava lotado. Quase só mulheres e de todas as estirpes. Havia professoras, historiadoras, Secretárias de governo, jornalistas, cineastas, psicólogas, feministas, especialistas em gênero, antropólogas, chefes de Ongs, curiosas e até senhoras sem nenhum atributo. Do lado masculino, também havia historiadores, arquivistas, escritores, pioneiros, estudantes, gays, senhores mudos e bem comportados etc. todos dispostos a dar sua contribuição para a construção da história daquelas “pobres coitadas” que teriam vindo à cidade lá pela década de 50 para saciar os instintos perversos, animalescos e macabros dos peões de obra e até mesmo de alguns políticos grãfinos. O filme foi singelo, mas a discussão foi estupenda. Comparado, o samba do crioulo doido seria pouco. Mas mesmo assim, no final, todos foram unânimes em afirmar que é com esses monólogos neuróticos e com essa verborréia intelectualóide que se construirá a história e o saber. Cada um que tomava a palavra lançava logo seu clichê. E sabemos que cada profissional tem o seu. Conhece-se de olhos fechados quando o sujeito que fala é jornalista, historiador, antropólogo, médico ou o que quer que seja. Como as “profissionais do sexo” eram poucas naquela época (segundo o filme) enfatizou-se as filas imensas de “bestas feras” a espera de sua vez. Todo mundo da platéia se horroriza ao ouvir as intelectuais e feministas relatando e repetindo que algumas mulheres tinham que trepar com até cinqüenta homens numa só noitada. Que as camas se despedaçavam, que havia sêmen nas paredes, que apesar do arame farpado para proteger a honra das casadas, assim mesmo alguém sempre pulava a cerca. A mulher esperneava, gritava, mas cedia... O barulho dos martelos e dos tratores sufocava seus gritos, de pavor, lógico. A médica que se intitulou feminista fez o relato de uma sua paciente ou confidente que mencionou uma pomada para aliviar as dores. Disse que chegou a ver as “partes íntimas” da prostituta e que realmente estava tudo inchado e ferido. Passava a pomada, respirava, descansava uns quarenta minutos e voltava à luta, porque lá fora a fila andava devagar e a peãozada já estava de pica dura. Faziam horas extras como os pobres operários lá nos prédios recém iniciados – lembrou a antropóloga. Uma das ex-putas do documentário afirmou que o próprio Juscelino ia com freqüência na tal de ZBM (Zona de Baixo Meretrício). A platéia, mesmo os idólatras engoliu em silêncio essa revelação da carne, menos um Diretor de Arquivo que quando tomou a palavra desqualificou as palestrantes e o filme, jogando cinzas sobre a tal de história oral. Não disse explicitamente que as putas haviam mentido, mas insinuou que as discussões estavam sendo feitas sobre bobagens e ignorância a respeito da história e mesmo dos bordéis. Ele que conheceu tudo de perto fez uma descrição topográfica interessante. Disse que nos puteiros X e Y as putas só faziam Papai/Mamãe, mas que nos puteiros Y e Z havia sodomia e até outra coisa que não consegui entender. O circo quase pegou fogo nesse momento. Alguém - como era de se esperar - lembrou que a sociedade é patriarcal. O senhor se acalma e as palestristas fazem pose. Um outro senhor que disse ser surdo tomou a palavra e fez uma homenagem às putas. Invisíveis não foram as putas, mas as donas de casa! Disse que sem elas a cidade não teria sido construída, que ele próprio foi cliente (porque precisava de mulher e ainda precisa apesar de seus 75 anos). Foi aplaudido por cinco ou seis pessoas que já o conhecem. Vendo as chamas ameaçando o evento, uma senhorita que se apresenta como historiadora faz uma rápida síntese do que estava acontecendo para logo em seguida exibir sua sapiência em forma de pergunta. A diretora do filme toma a palavra e aproveita para tentar explicar o inexplicável. Outra professora toma o microfone e diz o óbvio. A Secretária faz um pequeno discurso ideológico. Uma das palestristas, a que fez uma tese de mestrado sobre as putas e que disse ter nojo de pensar naquele bando de homens enfiando o sêmen numa mesma mulher, estava acabrunhada. Deve ter identificado na fala de alguma das raposas mais velhas alguma crítica intolerável para suas pretensões acadêmicas ou coisa parecida. O clima está ótimo. O sujeito que escreveu um livro sobre cafetinas (e que vai autografá-lo depois do evento) tomou a palavra para relatar sua epopéia pelos bordéis e o quanto foi difícil e extenuante o acesso às tais empresárias do sexo. O que, aliás, é crime lembrou ele, mencionando o nosso honroso Código Penal. Elogiou a todas as palestrantes como um perfeito homem intimidado e cordial e voltou para seu canto. A psicanalista faz sua parte. Como as outras senhoras defende as pobres mulheres da noite. Lembra que todos temos as nossas perversões secretas e que em questões sexuais ninguém é santo. Praticamente todas parecem defender a causa das putas. Citam a Holanda, a Dinamarca etc, onde elas são profissionais iguais às das fábricas, das lojas de cosméticos, dos ministérios, das universidades etc. Sinto que lutam com unhas e dentes para ocultar e para não desbundar no viés feminista, mas sempre que mencionam o tesão e a sexualidade masculina o fazem como se ela fosse uma distorção cultural ou então gerada pelo mundo capitalista. A vontade masculina de foder parece ser para elas uma anomalia, uma tara fora de controle que deve ser manietada e constrangida – nos mesmos moldes que foi a feminina durante séculos. Os homens presentes estão de joelhos e de cu apertados. Há alguma prostituta presente? Perguntou a coordenadora do evento. Ninguém levantou a mão. Uma menina bem jovem e nitidamente neurastênica caminha de um lado para outro esbravejando contra o sujeito careca que disse ter chegado recentemente de Nova Iorque e que estava assustado com o discurso feminista vigente e com a ingenuidade das declarações das palestrantes. O circo pegou fogo. Resmungos, impropérios, histerias. Uma professora palestrante tomou a palavra e lançou contra o sujeito o discurso clássico e falacioso dos anos 60. E a platéia aplaudiu. As chamas se espalham. Os bombeiros aparecem. Bom gente... Vamos ficar por aqui hoje??? A Secretária tomou a palavra novamente para fazer o clássico e burocrático “fechamento” e aproveitou para relatar que esteve na Nicarágua, que trabalhou com as putas de lá que se regeneraram após a revolução etc. Disse também que mulheres de países nórdicos, (loiras como ela) costumam ir para uma determinada ilha do Caribe para prostituir rapazes morenos etc, etc. Aí as feministas engoliram em seco, mas enquanto buscavam no adestramento acadêmico alguma teoria pós conceitual que justificasse aquela "imoralidade", muita gente já estava em pé. O sujeito sentado ao meu lado estava louco para lembrar a teoria de Engels de que a puta da rua só se difere da puta do lar porque vende seu corpo a muitos por instantes, enquanto que a puta do lar o vende a um só para toda a vida. Também gostaria de lembrar que muitas daquelas putas que o filme mencionava enriqueceram às custas de apropriarem-se dos míseros salários daqueles pobres e desamparados trabalhadores. Cochichou-me que na atualidade as putas vão aos garimpos e em troca de uma trepada mixuruca, em pé ou atrás de uma árvore arrancam do garimpeiro a única pepita que ele precisou um ano para encontrar... Mas o tempo havia acabado. Em síntese, foi um show. De todos aqueles umbigos enrolados uns aos outros se constatou novamente que tanto a repressão sexual como a distorção intelectual de nossos pensadores é muito mais grave do que se imagina. Que o diálogo não é coisa fácil e que a tendência é o mundo morrer sufocado e atormentado por monólogos intermináveis, quase todos fundamentados nas neuroses, nos medos e nos transtornos de personalidade de cada um dos bem intencionados (ou não) monologantes.

Ezio Flavio Bazzo

sexta-feira, 20 de março de 2009

O boi atropelado e a horda sanguinária


Segundo notícia de um jornal regional de Pernambuco, na última quarta-feira um grupo de anônimos protagonizou uma cena de arrepiar os cabelos numa rodovia próxima a Jaboatão dos Guararapes. Convocados pela polícia rodoviária para ajudar a retirar debaixo de um caminhão o boi que havia sido atropelado, aqueles pobres miseráveis arrastaram o animal ainda vivo e agonizante para o acostamento e ali mesmo, com suas peixeiras, começaram a retaliá-lo e a esquartejá-lo. No meio de todo aquele rio de sangue a cabeça deve ter ido para um, a paleta e o pescoço para outro, o patinho e a alcatra para um terceiro, a fraldinha e o filé mignon ficado com os policiais, a picanha ido para o motorista e o contrafilé dividido entre os curiosos que enquanto assistiam àquele festim macabro e fúnebre lambiam os beiços. Triste, enfezado e lastimoso destino o dessa raça! Diante de uma loucura desse porte só nos resta reconhecer – como dizia Jean Genet – a imunda fraternidade dos crocodilos sorridentes.

Ezio Flavio Bazzo

O Clodovil e a maldição eterna sobre o Congresso Nacional


A morte do deputado Clodovil colocou em evidência – não apenas para os esotéricos – que há sim uma maldição sobre o Congresso Nacional, que ali não é um lugar para frouxos e nem para frescuras, que o pré-requisito básico para ingressar na política é ter um gene defeituoso, ser mala, bandidão e vaselina. Revejam a trajetória do Deputado Juruna (índio); do deputado Enéias (cardiologista); do deputado Mascarenhas (psicanalista) etc, etc. Não, ali não é lugar para qualquer um. É necessário ter se iniciado no escroquismo moral já lá no grêmio estudantil, se reciclado no DCE das universidades, feito residência nos sindicatos, de preferência ter estudado Direito e claro, já ter tido na família alguém do ramo. Em outras palavras: é necessário ter sido iniciado na bandidagem precocemente, saber dissociar as palavras do significado, assim como a malignidade do afeto e, claro, saber mentir com maestria olhando nos olhos das multidões e até abraçando “ternamente” aos inimigos. Para ser político é necessário ter além de um defeito moral, o estômago para passar anos e anos chamando de excelência a outros escrotos engravatados. Enfim, aquele historiador que conseguir se infiltrar nos subterrâneos e no submundo daquela casa produzirá lá uma obra mais terrível que a de Dante e contribuirá como nenhum outro para os protocolos da psicopatologia. Que o Clodovil, com seus trejeitos e suas plumas flutue em paz pelos labirintos do nada.

Ezio Flavio Bazzo

Porcos e Guilhotinas

quarta-feira, 18 de março de 2009

Velhacos, velhacagens, velhacarias, velhacórios


Quem viu o discurso do Senador Cristóvão a respeito da recente reportagem que acusa os senadores de velhacos ficou em dúvida se ele estava realmente se queixando indignado, ou simplesmente aproveitando para, do alto daquela tribuna privilegiada, além de colocar-se a salvo, fazer um elogio e um comercial, tanto ao O Globo como ao articulista que assina o referido artigo.

-“A matéria saiu num jornal que é um dos melhores do Continente e do mundo... – bradava ele com sua postura de pároco. E não foi feita por um jornalista qualquer, mas por um dos mais respeitáveis, que, aliás, é meu amigo”. O Globo, um dos melhores jornais do mundo? E depois, aqui entre nós, existe jornalista respeitável? – foi o que me veio em mente. E o nobre senador, após falar idilicamente sobre “a revolução educacional” e fazer uma breve preleção sobre o significado da palavra VELHACO passou mais uns quinze minutos perguntando aos três ou quatro colegas do auditório e para si mesmo, num tom meio melancólico “o que estamos fazendo de errado para que nos vejam assim?”. Ora, professor Cristóvão, é evidente que essa pergunta também contém os elementos da mais sofisticada das velhacarias!

Ezio Flavio Bazzo

terça-feira, 17 de março de 2009

A modernidade e nossos Pátios dos Milagres


Se você quer conhecer São Paulo – além dos shoppings, da Avenida Paulista, dos Jardins e da casta Uspiana circule das 06h00 às 08h00 da manhã aqui pelo centro. A imagem mais fidedigna – depois da Praça da Sé, evidentemente - você vai encontrar sob as marquises das Casas da Banha aqui na Praça Ramos. Hoje, segunda-feira, 16 de março, faltando cinco dias para o início do outono, contei 48. Quarenta e oito sujeitos enrolados em seus cobertores, papelões, plásticos, jornais e colchões ou, simplesmente debruçados sobre o calçamento. Entre eles haviam 3 cadeiras de rodas, quatro cachorros e cinco crianças. Quando as lojas começam abrir as portas vão acordando, limpando os olhos e iniciando uma luta terrível e interminável com os piolhos, as pulgas e os carrapatos. Recolhem suas tralhas e vão cambaleantes para as escadarias do Teatro Municipal que fica bem em frente, onde à noite, algum palhaço vai divertir a burguesia ou alguma troupe intelectualizada vai fazer demagogia com os textos de Brecht ou de Ibsen. Um carro da polícia está estacionado perto dali. O movimento de pedestres aumenta de um instante para outro e aqueles homens que ficam na Rua Conselheiro Crispiniano esquina com a Barão de Itapetininga, sim, aqueles velhotes miseráveis com cartazes no peito e nas costas anunciando que compram ouro, platina e até diamantes vão se posicionando ao longo das paredes, como espantalhos.

O que é a cidadania? É a compulsão por vomitar sempre que se está diante de um dos tais “homens públicos”.

Ezio Flavio Bazzo

segunda-feira, 16 de março de 2009

A kent´annos! (Que você viva cem anos!)


São Paulo, 15 de março de 2009. Já nos muros do Cemitério, os que ficam pelo lado da Consolação, duas pichações emblemáticas. Uma exigindo a legalização do aborto e a outra literalmente assim: “o amor é importante, porra!”.

Nos degraus de entrada três punks em postura meditativa, dois caras e uma mulher. Atravesso as vias principais, entro pela esquerda, faço umas manobras em ziguezague até chegar aqui em frente ao suntuoso mausoléu da família Siniscalchi, bem na esquina da Rua 35 com a 37. O monumento em mármore gelo e vitrais azuis é a réplica de uma catedral européia – provavelmente da Notre Dame. No alto de seus dez ou doze metros, duas torres góticas (góticas?). Leio a placa que fica no rodapé onde diz que foi feita ou importada pela marmoraria J. Savoia. Nos fundos dela, por ironia, um frango preto, com fitas também pretas amarradas às pernas cisca tranquilamente como se estivesse lá na chácara da mãe Joana. Avanço mais uns cem metros até chegar ao exagerado e também suntuoso monumento erigido para abrigar os ossos do Comm. (esse Comm deve ser de comendador) Ermelino Matarazzo. O Comm e o Conde seriam a mesma pessoa? Lembro do frivolamente do Conde de Lautrèamont. Construído quase na esquina do cemitério esse soberbo bloco de concreto, mármore e bronze é um signo da soberba e da afronta secular dos estrangeiros contra os tupiniquins. Silencio. Parece não haver ninguém vivo por aqui. Mas só parece. De repente, uns suspiros vindos detrás de umas lápides. Tem alguém trepando por aí? – tive o ímpeto de gritar. Logo apareceu a cabeça de um homem, depois a de uma mulher. Um casal jovem de mendigos. Ela com uma saia vermelha e com as banhas das tetas e da barriga para fora. Ele, com um calção também vermelho veio agressivamente pedir-me um cigarro. Não acreditou que não fumo. Coçou o saco e moveu-se de maneira suspeita. Vi nos seus olhos uma longa ficha policial. A mulher veio até ele com uma garrafa na mão. Pressenti o perigo. Minha única defesa seria a caneta Bic. Assumi a postura clínica. Recuei sem deixar visível minha ansiedade. Meti-me por entre as tumbas e os mausoléus. Desapareci. Só fui relaxar quando já estava lá pelos lados do Cemitério Protestante e o do Carmo. (Aqui, pouca gente sabe, são 3 cemitérios em 1).

Túmulos de todos os tamanhos, cores, formatos. Não pode ser comparado ao Père Lachaise, mas em termos de arte funerária é respeitável. Os nordestinos e os portugueses que trabalham aqui deixam tudo impecável. Duvido que os inquilinos tenham alguma queixa. São inúmeras as estátuas e esculturas em bronze sobre as lápides, cada uma com seu significado explicito ou secreto. Uma mãe segurando o filho morto nos braços - por exemplo. As asas de um anjo fraturadas; diversas estatuas com a mão na face, o gesto clássico da melancolia; uma moça elegante debruçada sobre um caixão; o Cristo com o dedo em riste; cenas mórbidas do calvário; uma escultura de homem onde não há ventre; os cinco anjos femininos no jazigo da família Simonsen. Jazigos perpétuos! Descanso eterno! Aqui jazem as cinzas do fulano de tal! Que palavreado esquisito. Os pés das esculturas. Sempre avalio a competência dos escultores pelos pés e pelas mãos de suas obras. Não é fácil reproduzir as antigas garras dessa espécie.

Um enxame de mosquitos levantou vôo de um castiçal apodrecido. Um deles já me envenenou as costas. Bem que poderia ter trazido repelente. Se a dengue comum já é um perigo, a de cemitérios deve ser fatal. Muros com arame farpado em espiral, tipo aquele dos campos de concentração ou da Embaixada Americana em Brasília. Seriam para conter os vivos ou os mortos? Pequenos e sutis sinais de macumba aqui e acolá que só são percebidos e notados por um expert – me explicou o coveiro. Fotografo uma estátua de mulher em mármore branco, numa posição similar à do Pensador de Rhoden. Pensaria em que? O português prolixo que trabalha há mais de meio século aqui dentro relatou-me o caso recente da florista – sua colega – que meteu bala de 38 na barriga de um homem. Nunca mais a viu. Está presa. Vale a analogia entre o presídio e o cemitério. De vez em quando um susto. Um pássaro ou um necrófilo surge do nada. Um beija-flor lambe a flor deixada por um anônimo entre os dedos de uma madona em mármore. Sobrevoa como um raio outros mausoléus e volta em seguida, voraz e decidido a saciar-se. Silêncio sepulcral. Leio os sobrenomes nos monumentos: Domenico, D´andratta, Gurzoni, Mascaro, Capasso, Gagliotti, Monegaglia... Estou no Brasil ou na Itália, porca madonna?

A escultura enigmática no túmulo da Família Botti. Um tapete de musgos naturais e verdes ao lado da muralha. O bloco de mármore e granito sóbrio abriga os restos mortais e editoriais do senhor José Bento Monteiro Lobato. Mais acima o da Tarsila do Amaral. O da família Curry é uma obra prima. Há por aqueles lados um Jesus morto, com as feridas visíveis e sua mãe debruçada sobre ele num gesto contra e anti-édipo. Uma moça em postura zen no mausoléu da família Abdalla Azem. E na tumba do Dr. José Vieira Couto Magalhães, um quadro em alto relevo, também em bronze leva o título: O selvagem. Nele aparece um indígena remando solitário seu barco.

Identifiquei uma única escultura repetida em todo o acervo deste cemitério. Trata-se de uma mulher com algo nos braços que de longe parece ser um violino, mas que de perto se constata ser um crucifixo. Pelas datas dos nascimentos inscritas nos jazigos aqui há gente de todos os signos. Da hora que entrei aqui, até agora, os sons e os barulhos foram mudando. Vejo chapéus se movendo lá longe entre símbolos sacros e mortuários, o ruído dos ônibus lá fora, das rodas do carrinho dos coveiros e o cochichar de uma oração interminável que alguém faz para seu morto. Dou por terminada esta visita e tomo o rumo da saída recitando para mim mesmo a conhecida saudação comum lá na velha Sardenha: A kent´annos! (que você viva cem anos!)

Ezio Flavio Bazzo

domingo, 15 de março de 2009

O corpo com as respectivas perversões que o sustentam...


São Paulo, 14 de março de 2009 – Sacrifiquei minha ida ao Cemitério da Consolação neste sábado nublado de março para vir ao Simpósio de Imagem Corporal, no Instituto de Psiquiatria do Hospital de Clínicas. É quase unânime – entre os deserdados que conheço – a idéia de que quanto mais tempo se passa distante da academia mais o discurso dos professores e congêneres nos vai parecendo inóspito e estéril. Mas adianto desde já que valeu. Amanhã vou ao cemitério e pronto, estará feita minha reparação para com os defuntos. Numa platéia de mais ou menos 200 pessoas, 95% são mulheres. As mais interessadas talvez, até mais como pacientes de que como profissionais. Afinal, como recorda uma palestrista: “toda mulher deseja perder uns 3 quilos, inclusive as da Somália”.

O construto imagem corporal... Diz a frase projetada lá na parede. O corpo e sua construção como o único capital tangível que possuímos,temporariamente, claro, e é por ele, através dele, apesar dele que ocorre toda a percepção da vida assim como toda a percepção e a inevitabilidade da morte. As impressões táteis, térmicas, e de dor deslizam pelos ossos, veias, pele, sangue, linfa e claro, pelas emanações invisíveis da tal subjetividade, do imaginário e do simbólico. O diferente é excluído! Narciso sempre na moda. O estéril patológico. Vamos recordar Merleau-Ponty e o careca Foucault. Aqueles casos em que se nega partes do corpo ou quando o membro amputado insiste em fazer-se presente, como um fantasma. Talvez Sêneca estivesse certo quando insistia em que não é livre quem é escravo do corpo. Daí o tamanho de nossa indescritível penitenciária.

Instrumentos para avaliar a distorção corporal. Meninas anoréxicas. E isso não é uma questão apenas de nossas menininhas ricas. Não quero que este espaço formal se formalize – enfatizou cheia de cordialidade a doutora. Como diziam Cash e Pruzinsky. A depreciação do corpo. Claro que a percepção é multifacetada. Vamos prestar atenção às etnias e às origens (como os norte-americanos). Vejam as contribuições dos chargistas. Vejam as meninas cadavéricas que se percebem como gordas no espelho. Body Image. A mídia e os símbolos sexuais. Mas o que é o real? O sofrimento e as metáforas? Qual era o IMC dela? Daquela mulher que se via como uma bola? Nosso olhar clínico sobre a pasteurização do corpo e das carnes. Aqui cabe uma discussão epistemológica. Tenho nojo, aversão e repúdio ao meu corpo... Medo mórbido de tornar-me uma porca gorda... Qual era a religião da paciente? Seguramente católica, apostólica romana.

Sei que o corpo não é carro. Prestem atenção na discrepância entre o atual (mar de banhas) e o idealizado (mar de ossos). Lembro-me involuntariamente da Claudia Schiffer. Da moça que não conseguia ensaboar o corpo. Como passar o sabonete lá? As neuroses da academia (academia de ginástica). A cópula carnal, representativa do amor (foi a doutora que disse). Prefiro morrer a ser gorda. Se estivesse grávida e soubesse que meu filho trazia com ele o gene da obesidade abortaria. Palavras de pacientes nada pacientes. Vejam na Revista Vogue a Câmara de Congelamento destinada aos ricos para embelezar-se. Apenas três minutos lá dentro e eis que o milagre acontece. Qualquer um pode conquistar a beleza e, por que não, a imortalidade. Na pior das hipóteses virem a ser um cadáver saudável e atraente. É verdade que vivemos num mundo assombrado pelas imagens corporais. Baudrillard (gostaria de ter escrito seus livros) assegura-nos que o corpo é um objeto de salvação... Sim, o corpo com o mito do prazer que o circunda (aqui pode estar havendo uma sutil e sofisticada repressão sexual). O corpo como morada transitória da alma. Ah, ia me esquecendo: nesse paraíso de banhas subsiste a alma. Pelo menos a dos padres e a das freiras. Quantas vezes a gente deita achando-se horrorosa e acorda achando-se uma beldade e vice-versa – exclamou a professora. Mesmo sabendo que a imagem corporal é um processo e não um produto – lembram Gleeson e Frith. Parece mentira, mas 40 a 70% das meninas sentem-se insatisfeitas com seu corpo, e 59% das crianças e adolescentes sentem-se infelizes com sua aparência. Sorte que não sabem o que os espera. A anorexia pode lembrar o escorbuto, a pelagra a anemia.

Desculpem o frio! Nosso ar condicionado está com um erro cognitivo. (Ninguém mais teve dúvidas a respeito de seu marco teórico)

Não se deve assumir um paciente quando as feridas pessoais ainda estão abertas. Ser descontente tornou-se uma norma. Se em Taiwan, 71% das meninas são insatisfeitas com seu corpo imaginem então as mulheres que estão em outras faixas etárias... E a Revista Caras, da Angola, que promoveu um concurso de beleza entre os sobreviventes das minas? Exotismo ou sadismo? Não podemos nos esquecer das mutilações sexuais. Alguém da platéia lembrou a história do transexual que era também cleptomaníaco. O corpo que eu sinto não é o corpo que eu vejo. O olhar do mundo que não me olha. Gosto imensamente quando a coisa descamba para a poesia e para a filosofia (Isto sou eu que digo).

Vamos lembrar os cadeirantes, os travestis – esse gênero diferenciado – e o silicone industrial. E os deficientes visuais? E as bailarinas com anorexia? E os déficits corticais? Sabemos que pessoas “menores” tendem a superestimarem seu tamanho corporal e vice-versa. Atenção ao córtex. À menarca precoce. Sempre é conveniente lembrar-se daquela gorda que se submeteu à cirurgia bariátrica e que continuou se percebendo como gorda.

Colegas temos aqui a Teoria Perceptual e a Desenvolvimentista. A coitadinha viu aquilo na calcinha e logo em seguida a avó anunciando aos quatro ventos que havia mais uma moça na família. No fundo de toda memória o velho Buyling. A arte de zoar dos outros. Psicopatinha. Hoje já existe até consultor para apelidos.

Nossa, como você engordou! Dizem que cinqüenta por cento das mulheres fumam para manterem-se magras. Azar do pulmão – cochicha-me a nutricionista do lado. Mas isto não é tudo. 35% dessas malucas afirmam que abririam mão de três ou quatro anos de vida para não chegarem a ser obesas. Emagrecer é preciso, viver não é preciso. Como vai o tônus muscular? Querem saber as pessoas que ao fazer 25 anos entram em crise existencial. É preciso dar-lhes razão, pois esse humor é de quem já está bem mais velho. E as estrias? Perguntaria um sádico. Sedação lembra sedução. Ontem se dizia manequim. Hoje só se fala em modelo. Coisas da semântica. Não se pode negar: o mundo está cada dia mais repleto de lipófobos. As banhas, essas intrusas. Ditadura da beleza. Da beleza ou da feiúra?

Pode haver uma hiperfagia associada, não é doutor? Vamos ao CID 10 ou ao DSM IV? Século dos anorexígenos. Além da anorexia nervosa há o subtipo restritivo e o purgativo. Alguém da platéia pergunta se a anorexia nos homens tem alguma coisa a ver com a homossexualidade. Quem sabe, não temos dados, retruca a Dra da USP. Tudo passa por um comer transtornado. Uma moça falou em ortorexia. Ou seria hortorexia? Pavor mórbido por todos os lados. Então existe o pavor não mórbido. Sabiam que toda bulimica quer ser anoréxica? A platéia ri, mas é sério. Perder peso é mole, o problema é manter-se magra. Isto me lembra o pensamento cigano que diz “acender a chama é fácil, o difícil é protegê-la do vento”. Sim – repete a doutora – perder peso é mole, os números da balança são tangíveis. O difícil é mudar-se internamente. Gordura não é sentimento. Relaxem que até o Dalai Lama sente raiva, mas não vamos cair no positivismo, isto é apenas uma teoria. Havia uma paciente que precisava suprimir os atributos femininos. Lembrem que numa pessoa que está muito emagrecida o cérebro funciona em outra freqüência.

Por que elas pioram quando melhoram? Nem Freud. Eis aí uma das múltiples incógnitas femininas. Diabetes Mellitus. Desordem ou transtorno? Quando a criança conquista a postura ereta (deixa de andar de quatro para ficar em pé) perde automaticamente milhões de neurônios. Você sabia?

Vamos falar da Síndrome de Gerstman, aquela onde o sujeito mutilado não abre mão de seus membros fantasmas. Ou da Síndrome de Fregoli (esse devia ser italiano), onde o doente acredita que todas as pessoas são a mesma (disfarçada). Claro que não poderíamos esquecer-nos do Transtorno Disfórico Pré-Menstrual, do Skin Pickine e da paciente descrita por Janet, aquela que passou cinco anos trancada em casa com medo que se saísse à rua causaria pavor nos outros. Também é bom rememorar o Homem dos lobos, aquele que os psicanalistas não se cansam de invocar. A Síndrome de Thersites e a de Quasimodo que, como sabemos nos remete ao corcunda de Notre Dame. Também vale a pena mencionar o homem com Transtorno Dismórfico que dormia sem travesseiro para não amassar o rosto. E mais o Dr. Shopping e o turismo estrangeiro que inclui as praias do Rio e uma plástica. E por falar em plástica, ainda se faz por aí a himenoplastia (revirginização na linguagem popular), vaginoplastia, clitoriplastia etc. E claro, existem as drogas serotoninérgicas disponíveis em todas as esquinas.

A tua aparência te foi dada – diz o Islã. Modificá-la é pecado. Além disso, a beleza é vulnerável ao olho do demônio. KORO ou Cultural bound syndrome. Os comedores de carne de porco do sudeste asiático viram-se mergulhados na crença de que o pênis desaparecia no interior do plexus (e também a vagina, em se tratando das mulheres) Uso de esteróides. Exemplo: Michael Jackson.

Tudo pode acontecer lá no setting clínico. Mas vamos ser éticos e competentes. Perdoem-me se pareço uma mãe lambendo a cria. A colega da fileira de trás expirou e confidenciou em seguida a alguém: nunca consegui ter um expiro individual, são sempre coletivos. Coisas de psicólogos. Tempo esgotado. Muitas palmas, elogios mútuos e a clássica cordialidade nacional. Gostei.

Já lá na rua, indo em direção ao hotel e passando por sob um viaduto me percebi olhando para os pobres mortais desde o alto de meus novos saberes. E isto, evidentemente, era muito mais grave de que qualquer um dos transtornos dismórficos corporais mencionados, pois tratava-se de uma anomalia da “alma”.


Ezio Flavio Bazzo

sexta-feira, 13 de março de 2009

E prosseguimos na construção da Torre de Babel


Hoje, sexta-feira, lá pelas sete da manhã, enquanto estacionava nos fundos do ambulatório aonde vou diariamente trocar meu “suposto saber” e meu trabalho por pão preto e arroz integral, fui abordado por um homem de uns quarenta anos – já o havia visto outras vezes ali pelos corredores do hospital – que com um livro de capa vermelha nas mãos (não consegui ver o nome do autor) pediu-me licença para recitar sete ou oito linhas. Parecia não ter dormido. Provavelmente teria passado a noite no campus da universidade encostado numa pilastra qualquer. Talvez brincando com os gatos na parte subterrânea daquele prédio bizarro ou mesmo na porta do departamento de filosofia à espera de algum professor ou mesmo dos personagens insanos de seus delírios. Iniciou a leitura olhando alternadamente para o livro e para meus olhos: “para o psiquiatra, o neurótico é aquele que sofre com as dificuldades cotidianas que os outros e a vida lhe impõem. Já, o psicótico, é aquele que torna difícil (ou impossível) a vida dos outros”. Fez uma careta de riso e, acreditando que eu fosse psiquiatra, esperou por uns instantes que eu me pronunciasse. Como fiquei em silêncio, virou a página e leu este outro trecho: “O psiquiatra “organicista” quer fazer os outros acreditarem que o cérebro produz o delírio da mesma maneira que os rins produzem a urina”. Deixou escapar uma gargalhada, deu-me as costas e infiltrou-se no meio de uma centena de outros pacientes, de todas as especialidades, que já estavam ali esperando por seus respectivos doutores desde as quatro da madrugada.


Ezio Flavio Bazzo

quinta-feira, 12 de março de 2009

Las noches y las nuestras pesadillas


Mesmo tendo sido criado quase na fronteira com a Argentina, só fui ler verdadeiramente as obras de Borges com mais de quarenta anos. Primeiro pela ignorância generalizada e epidêmica que caracteriza os vilarejos e as pequenas cidades brasileiras, segundo, pelo patrulhamento político/ideológico daqueles tempos e daqueles sujeitos crápulas e prepotentes que se diziam socialistas, comunistas etc e que hoje estão todos gorduchos e transmutados. Em qualquer sindicato, grêmio estudantil ou reunião de intelectualóides que se ia, era reafirmada sempre a idéia de que tanto piazolla, como Borges, Frank Sinatra e até mesmo o surdo Beethoven eram burgueses e direitistas abomináveis. Independente dessas cretinices, hoje ouço a Piazolla sempre que posso e a Obra Completa de Borges não sai de minha mesa de estudos. Quando algum amigo ou paciente me relata um sonho ou um pesadelo – por exemplo – me apresso em voltar para casa para reler na página 221 do Vol. III o que aquele velho bibliotecário escreveu em seu “ensaio” sobre La pesadilla. Naquelas seis páginas preciosas, citando a Groussac, o escritor argentino escreve: “es asombroso el hecho de que cada mañana nos despertemos cuerdos – o relativamente cuerdos, digamos – después de haber pasado por esa zona de sombras, por esos laberintos de sueños”.

Foi em seu texto que descobri que a palavra pesadelo, (pesadilla em castelhano) em grego se escreve "efialtes", nome do demônio que inspira os pesadelos. Em latim a palavra é “incubus”. O incubo é o demônio que oprime e inspira o pesadelo naquele que dorme. Em alemão a palavra para designar pesadelo é "Alp" e tem o mesmo significado demoníaco. Para nomear um pesadelo em inglês – lembra Borges – se diz "The nightmare", que traduzido para o castelhano seria “a égua da noite” ou, etimologicamente pode ser "niht maré" ou "niht maeré", que remete novamente ao demônio da noite. Ele, o velho Borges, que tinha pesadelos repetitivos com espelhos e com labirintos finge ignorar os conceitos freudianos sobre os sonhos e brinca com seus leitores trazendo essa visão teológica e infernal dos pesadelos. “Siempre sueño con laberintos o con espejos – confidencia – En el sueño del espejo aparece outra visión, outro terror de mis noches, que es la idea de las máscaras. Siempre las máscaras me dieron miedo. Sin duda senti en la infância que si alguien usaba una máscara estaba ocultando algo horrible. A veces (éstas son mis pesadillas más terribles) me veo reflejado en un espejo, pero me veo reflejado con una máscara. Tengo miedo de arrancar la máscara porque tiengo miedo de ver mi verdadero rostro, que imagino atroz. Ahi puede estar la lepra o el mal o algo más terrible que cualquier imaginación mia.


Ezio FLavio Bazzo

terça-feira, 10 de março de 2009

O poder corrompe. A impotência também.


Confesso que tenho vergonha de seguir escrevendo as mesmas coisas que escrevia lá na década de 70 quando vivia em Curitiba e depois em Londrina. Aqueles cafezais imensos, as repúblicas de estudantes, os papos neuróticos e persecutórios dos jornalistas, as farras, os trotes estudantis, as putas eufóricas com os novos ricos, os presos políticos, os modismos orientais. Trinta e nove anos depois e tudo segue igual. De que falávamos mesmo naquela época? Dos hospitais sucateados e dos médicos carniceiros; do analfabetismo generalizado e das escolas vagabundas; dos professores pilantras; dos psicologismos, da mídia cortesã; do envenenamento cultural transmitido pelas novelas e pelos programas televisivos. Falávamos dos agrotóxicos, de Wilhelm Reich e de suas caixas de Orgon, da burocracia, do enlouquecimento coletivo, dos Rolls Stones, de macrobiótica, de cocaína, de maconha, do ácido lisérgico, de Bakunin, de Marx, de Sacco e Vanzetti, de Pinochet, da reforma agrária, da desnutrição, da mortalidade infantil, da inflação, da dívida externa, da corja política, do imperialismo americano, de Che Guevara e deste ou daquele intelectual narcisista. Chile, Argentina, Bolívia, Uruguai, as ditaduras latino americanas conectadas. Matavam um chileno aqui, no outro dia um brasileiro era torturado lá, na semana seguinte um argentino acolá. Discursos, justificativas, asilos políticos, mentiras, razões, ideologias, teologias, moralismos. E no meio de toda aquela merda fardada, atrasada e reacionária a Cordilheira dos Andes, soberba e indiferente a tudo. Missas por todos os lados, festas para os filhos que passavam no vestibular, o ensino primário, médio e superior mergulhado na indigência. Mendigos e guerrilheiros enterrados clandestinamente. Comer, engordar, vencer na vida... A juventude aloprada lendo castañeda a bíblia e dando o rabo. A lua como meta. Os Panteras negras, as Brigadas Vermelhas, o arroz integral no armazém do Michio Kushi. O famoso AI5. O Congresso. A corrupção silenciosa, a construção de vinte ou trinta famílias de corruptores. No fundo da mochila o livro de Thomas Szasz com esta frase sublinhada duas vezes: Le pouvoir corromp. L’ impuissance aussi.

Ezio Flavio Bazzo

domingo, 8 de março de 2009

Engravidai-vos uns aos outros


Nos finais de semana até o chamado Jardim Zoológico de Brasília fica com mais gente de que bichos. Já pela manhã uma longa fila de automóveis, bicicletas e carroças vai se formando ao longo do asfalto, cada um com dois ou três congêneres a bordo que vão passar o dia lá sob as árvores, ao lado da jaula dos leões, das serpentes ou do borboletário. Mesmo aos domingos há filas para tudo nesta cidade que, segundo o próprio Ministro da Justiça, se parece a um autorama stalinista. Nos caixas eletrônicos, nos sanitários, nos restaurantes, nos motéis, nos mercados, nos centros espíritas, na maternidade dos hospitais, nos postos de gasolina, nos açougues, nas casas lotéricas e nas sorveterias, para comungar-se, para autógrafo, para visitar o Congresso Nacional ou o monumento erigido em homenagem ao velho Tancredo etc. é necessário ficar lá atrás de outros dez ou quarenta sujeitos enfileirados... Fico impressionado ao deparar-me com essas multidões desvairadas, multirraciais e multiétnicas que até ontem não sabia que existiam e que por onde passam vão deixando um rastro de odores e de dejetos. Onde moram? De onde vieram? Para onde irão? Ninguém sabe. É a superpopulação descarada. O engravidai-vos uns aos outros. A cidadania em progressão geométrica. Os filhos de Deus. Bandos, manadas, multidões analfabetas e famintas, ricas, pobres, vorazes, esnobes, arruinadas, felizes, esperançosas e libidinosas. Malthus se preocupava com a falta de alimentos, nós nos preocupamos com a falta de oxigênio, de grandeza pessoal, de espaço e de transcendência. Sorte que em 2050, quando a terra terá que haver-se com o horror de 10 bilhões dessa espécie esquisita e desse homo obesus, já estarei bem “pra lá de Marrakech”.

Ezio Flavio Bazzo

sábado, 7 de março de 2009

Prostitutas, bruxas, donas de casa


Quando se aproxima o dia 08 de março a imprensa, a igreja, as congregações feministas, os comerciantes, as Delegacias de Mulheres, as Ongs etc, (todos movidos por suas respectivas culpas) se excitam e se apressam em trazer a tona (tendenciosamente) a velha lengalenga da mulher coitadinha, vítima, pobre coitada etc., colaborando, com essa choradeira tola e paroquial, para o aumento da distorção que já há entre o que verdadeiramente acontece nos bastidores, na penumbra e na vida privada entre os homens e as mulheres. Nós que trabalhamos com a saúde mental sabemos que a coisa não é bem como o populacho pensa e que:

"Escrever sobre as mulheres sempre foi e é uma das neuroses mais recorrentes, fúteis e antigas do mundo masculino. Uma via sofisticada e às vezes até eficiente para colocar-se a salvo. Para lidar com as frustrações interpessoais e com as mais variadas perversões ligadas sempre e sempre a um hipotético desejo, ao taboo universitário da equidade de gênero e aos frívolos catecismos sócios clericais institucionalizados. Em outras palavras: um intento de explicar-se a si mesmo num mundo cada vez mais cheio de escroques intelectuais, de misticismos esdrúxulos e de perversidades cívicas. Escrever sobre elas não passa de um ardil para justificar-se, para tentar colocar-se à altura destes últimos séculos descaradamente infames e bordelines onde se corre o risco de viver transitando alucinadamente da idolatria à misoginia e da bucetofilia para a bucetofobia. E como tudo neste mundo passa pelo lero-lero das palavras e da linguagem – vejam o martírio de Saussure, Freud, Lacan e de tantos outros que gastaram suas vidas batendo inutilmente nesta tecla - ofereço aos leitores este “Léxico adequado para a vida cotidiana das donzelas” escrito pelo pequeno marginal belga: Pierre Louys. Leiam-no atentamente como se fosse um prólogo, pois ele pode ser de grande utilidade aqui neste reino de trapaças e de falsa devoção onde vivemos:

[Não digas: “minha buceta”, digas: meu coração. Não digas: “tenho vontade de foder”, digas: estou nervosa. Não digas: “acabo de gozar como uma louca”, digas: sinto-me algo cansada. Não digas: “vou masturbar-me”, digas: volto em seguida. Não digas: “quando tenhas pêlos no cu”, digas: quando sejas adulto. Não digas: “prefiro a língua que o pau”, digas: só gosto dos prazeres delicados. Não digas: “entre as refeições só bebo esperma”, digas: faço um regime especial. Não digas: “as novelas moralistas me excitam”, digas: gostaria de ler algo interessante. Não digas: “goza como um cavalo que mija”, digas: é muito exaltado. Não digas: “quando lhe recomendo um pau fica zangada”, digas: é uma original. Não digas: “é uma moça que se masturba como louca”, digas: é uma sentimental. Não digas: “é a mulher mais puta que conheci”, digas: é uma garota encantadora. Não digas: “se deixa foder por todo mundo”, digas: é muito coquete. Não digas: “eu a vi fazendo frente e verso”, digas: é uma eclética. Não digas: “tem ereções como um cavalo”, digas: é um bom moço. Não digas: “tem um pau demasiado grande para minha boca”, digas: sinto-me como uma criança quando falo com ele. Não digas: “eu gozei na sua boca e ele na minha”, digas: tivemos um intercâmbio de impressões. Não digas: “quando o chupo ele goza rapidamente”, digas: é muito vivo e muito espontâneo. Não digas: “tenho doze consoladores em meu quarto”, digas: nunca me chateio estando sozinha. Não digas: “goza três vezes”, digas: tem um caráter muito forte. Enfim, evite comparações arriscadas. Não diga duro como um caralho, redondo como um ovo, molhado como uma xota, salgado como o esperma, do tamanho de minha concha e outras expressões não admitidas pela Academia]".

(Texto contido nas orelhas do livro Prostitutas, bruxas, donas de casa, de minha autoria, reeditado em 2009 pela Editora LGE)


18 Mandamentos da Mulher:



sexta-feira, 6 de março de 2009

Galos, aborto, bispos e excomunhão


O sujeito que há alguns anos atrás foi acusado de vender gabaritos de concursos públicos aqui no DF agora também está sendo procurado por ter em sua chácara uma criação de galos de briga. Em pequenas gaiolas e cheias de amor próprio, com suas esporas e bicos pontiagudos, aquelas aves sanguinárias olhavam desconfiadas para os agentes da lei como se intuíssem o pior para o patrão foragido. Nesse mesmo dia os gestores e os bispos do catolicismo excomungaram uma menina de nove anos e os dois médicos que abortaram seus gêmeos, filhos do padrasto que a havia acossado sexualmente e estuprado. Se o cinismo em geral parece não ter fim, o da igreja, em particular, se aproxima cada vez mais do inimaginável. Essa confraria do Vale de Lágrimas que fica insistindo na apologia da miséria e na manutenção de fetos a qualquer custo, finge esquecer que na Europa, entre o fim do século XV e o final do século XIX, cerca de 9 milhões de mulheres e crianças foram mortas por ela e por seus lacaios sob a acusação de bruxaria. Fazem de conta que não sabem que com todo o apoio da igreja cristã, essas mulheres eram estupradas, torturadas com instrumentos horríveis, forçadas a confessar crimes sexuais, mutiladas e queimadas vivas. Era bastante comum que mulheres e meninas de até cinco anos fossem acusadas de copularem com o demônio. Algumas vezes as meninas sofriam tantas torturas que chegavam a pensar que era realmente o diabo que as estavam torturando. - Ah, mas isto tudo foi no passado! Ouço uma voz cavernosa e fresca vindo dos fundos da sacristia...

Ezio Flavio Bazzo

quarta-feira, 4 de março de 2009

Uma última terapêutica, através do horror


Que pensem o que quiserem os já entorpecidos pela alienação, mas eu continuo dedicando uns quarenta e cinco minutos diários, todas as noites, às reprises das sessões, dos discursos, da mise-en scène, da atuação moribunda e tediosa dos senadores e dos juízes, cada um em seu gueto. Quem quiser construir um conceito ou uma visão particular sobre esta pátria e sobre este povo não pode abdicar desse exercício nefasto. E já comprovei que após cada uma dessas minhas sessões cotidianas, sinto-me bem mais curado de meus sonhos e de minhas antigas e tolas idealizações. Depois de cada uma dessas reprises sinto que compreendo mais profundamente a desgraça desses milhões de deserdados que se movimentam pelas ruas, pelos lixões ou por detrás das grades. Fica visível em mim, depois de ouvir atentamente a lábia dos senadores e dos juízes, o incremento de minha compaixão para com esses bandos de aloprados que lotam as igrejas, os estádios e os botecos bem como para com esses dementes que assim que a noite descamba sobre o mundo correm para os becos onde, cada um a seu gosto, vão prostituir sua mísera carne. Sim - e não estou fazendo demagogia - assistir ao show senil do senado e/ou o da magistratura, aqueles juízes com seus mantos longos e negros como o dos antigos romanos, me faz bem. Rememora-me a tese já descrita por diversos pensadores de que aquilo que costuma chamar-se imoralidade é apenas a eficácia desprovida de preconceito, e que apesar do pseudo moralismo vigente, quem não se confessa abertamente seu partidário, a venera e a inveja em segredo.

Ezio Flavio Bazzo

O calor, Niemayer e o inferno


Difícil encontrar um único brasiliense sóbrio que no meio da madrugada, quando acorda ensopado de suor, com o lençol encharcado e quase morrendo asfixiado, não invoque os nomes do Niemayer e do Lucio Costa para lançar sobre eles cinco ou seis maldições. É quase inacreditável que dois homens daquele porte, que se diziam e se consideravam socialistas ou comunistas, naquela imensidão de terras e de espaços do Planalto Central, com dinheiro correndo solto em baús, em malas e em contêineres tenham planejado e edificado tão mesquinhamente estes prédios, estas quitinetes e apartamentos tão impróprios, tão esdrúxulos, miseráveis, sem luz, sem ventilação e sem vitalidade, verdadeiros departamentos do inferno com janelas tão ou mais minúsculas que as do sistema penitenciário. O quarto destinado à empregada doméstica então, nem se fala, ninguém diria que essa nojeira foi obra de um defensor do proletariado. Sim, porque não se difere de um canil ou de uma gaiola, com uma janelinha lá junto ao teto pela qual não entra o ar necessário nem mesmo para as baratas. Tudo completamente diferente daquelas coberturas imensas de Ipanema, com varandas panorâmicas que dão ao inquilino uma visão paradisíaca e quase religiosa do mar, dos morros e da órbita celeste. E para completar esse inferno de quarenta graus, os governantes idiotas que se revezam no poder se dão o direito de levantar paredões e conjuntos habitacionais por todos os lados sem falar dos tapetões de asfalto e de concreto com o qual vão tapando e sufocando a terra. E as massas silenciosas permanecem silenciosas. Os mais conscientes apenas tagarelam, contaminam o mundo com sua verbigeração sem a mínima consciência de que – como dizia Brice Parain – a linguagem só é fecunda enquanto devora a existência. Sim, e a vida devorada - conclui Savater - se transmuta em todas as perplexidades da palavra, daquilo que se quis dizer e não se disse; daquilo que se disse sem querer; daquilo que não podemos dizer e daquilo que é preciso dizer mesmo quando não o sabemos.

Ezio Flavio Bazzo

domingo, 1 de março de 2009

Os carroceiros e os patos do Parque Sara Kubbitchechck


Brasília, comparada com a maioria das grandes cidades brasileiras pode ser considerada ainda uma cidade jovem, púbere, adolescente, imatura, sem caráter e sem personalidade definida. Sua população se divide facilmente diante de uma barbárie ou de um crime. Diante de uma decisão judicial ou governamental e até mesmo diante da simples derrubada de uma árvore – por exemplo – pode-se ter a impressão de que a cidade alberga dentro de si um autêntico transtorno bipolar. O mesmo fato que causa indignação e choro na Asa Norte pode causar euforia e risos na Asa Sul, indiferença na população do lago e vice-versa.


É o que está acontecendo nesta última sexta-feira de fevereiro diante da notícia de que, na última madrugada, dois carroceiros roubaram uma família inteira de patos que vivia no Parque Sara Kubitchek. Entenda-se por “família inteira” a pata e seus oito patinhos. O pai, o pato – como sempre – estava ausente e salvou-se.


Os mais, digamos, “humanistas” ficaram do lado do carroceiro de sua prole e de sua fome secular, outros, mais simpáticos aos animais que aos de sua própria espécie, defenderam a pata e seus filhotes. Um dos ladrões disse materna e amorosamente à delegada, que sua intenção era apenas criar os filhotes na invasão onde vive com sua meia dúzia de crianças e ao redor de sua carroça. Neste particular, curiosamente, a cidade não se dividiu, foi unânime em supor que o que ele queria mesmo era banquetear os pobres bichos. A dúvida que ainda atormenta os dois lados é se ele iria fazer pato no tucupi ou, como o que a nobreza francesa costumava ir banquetear lá no Le cannard d’Ór, pato com laranja? Os mais grã-finos chegaram até a alertar a polícia para a possibilidade dos carroceiros estarem pensando em produzir meio quilo ou uns oitocentos gramas de foie gras. Mas isto é bobagem, pois como o furto aconteceu à noite, é provável que os gatunos nem tivessem lá muita certeza se estavam levando para casa uma família de cisnes, de gansos ou de marrecos. Só souberam que se tratava de uma família de patos quando foram capturados. A hipótese de que os ladrões soubessem que o ovo da pata é afrodisíaco, evidentemente, nem passou pela mente quase cartesiana da justiça.


Ezio Flavio Bazzo