Fui ao Museu Vivo da Memória Candanga – lá pelos lados dos motéis – para assistir ao curta metragem: A saga das candangas invisíveis, documentário sobre as mulheres que, supostamente, teriam sido “mulheres da vida” ou putas, no princípio da construção de Brasília. Foi um dos melhores programas que poderia ter feito neste sábado. O auditório estava lotado. Quase só mulheres e de todas as estirpes. Havia professoras, historiadoras, Secretárias de governo, jornalistas, cineastas, psicólogas, feministas, especialistas em gênero, antropólogas, chefes de Ongs, curiosas e até senhoras sem nenhum atributo. Do lado masculino, também havia historiadores, arquivistas, escritores, pioneiros, estudantes, gays, senhores mudos e bem comportados etc. todos dispostos a dar sua contribuição para a construção da história daquelas “pobres coitadas” que teriam vindo à cidade lá pela década de 50 para saciar os instintos perversos, animalescos e macabros dos peões de obra e até mesmo de alguns políticos grãfinos. O filme foi singelo, mas a discussão foi estupenda. Comparado, o samba do crioulo doido seria pouco. Mas mesmo assim, no final, todos foram unânimes em afirmar que é com esses monólogos neuróticos e com essa verborréia intelectualóide que se construirá a história e o saber. Cada um que tomava a palavra lançava logo seu clichê. E sabemos que cada profissional tem o seu. Conhece-se de olhos fechados quando o sujeito que fala é jornalista, historiador, antropólogo, médico ou o que quer que seja. Como as “profissionais do sexo” eram poucas naquela época (segundo o filme) enfatizou-se as filas imensas de “bestas feras” a espera de sua vez. Todo mundo da platéia se horroriza ao ouvir as intelectuais e feministas relatando e repetindo que algumas mulheres tinham que trepar com até cinqüenta homens numa só noitada. Que as camas se despedaçavam, que havia sêmen nas paredes, que apesar do arame farpado para proteger a honra das casadas, assim mesmo alguém sempre pulava a cerca. A mulher esperneava, gritava, mas cedia... O barulho dos martelos e dos tratores sufocava seus gritos, de pavor, lógico. A médica que se intitulou feminista fez o relato de uma sua paciente ou confidente que mencionou uma pomada para aliviar as dores. Disse que chegou a ver as “partes íntimas” da prostituta e que realmente estava tudo inchado e ferido. Passava a pomada, respirava, descansava uns quarenta minutos e voltava à luta, porque lá fora a fila andava devagar e a peãozada já estava de pica dura. Faziam horas extras como os pobres operários lá nos prédios recém iniciados – lembrou a antropóloga. Uma das ex-putas do documentário afirmou que o próprio Juscelino ia com freqüência na tal de ZBM (Zona de Baixo Meretrício). A platéia, mesmo os idólatras engoliu em silêncio essa revelação da carne, menos um Diretor de Arquivo que quando tomou a palavra desqualificou as palestrantes e o filme, jogando cinzas sobre a tal de história oral. Não disse explicitamente que as putas haviam mentido, mas insinuou que as discussões estavam sendo feitas sobre bobagens e ignorância a respeito da história e mesmo dos bordéis. Ele que conheceu tudo de perto fez uma descrição topográfica interessante. Disse que nos puteiros X e Y as putas só faziam Papai/Mamãe, mas que nos puteiros Y e Z havia sodomia e até outra coisa que não consegui entender. O circo quase pegou fogo nesse momento. Alguém - como era de se esperar - lembrou que a sociedade é patriarcal. O senhor se acalma e as palestristas fazem pose. Um outro senhor que disse ser surdo tomou a palavra e fez uma homenagem às putas. Invisíveis não foram as putas, mas as donas de casa! Disse que sem elas a cidade não teria sido construída, que ele próprio foi cliente (porque precisava de mulher e ainda precisa apesar de seus 75 anos). Foi aplaudido por cinco ou seis pessoas que já o conhecem. Vendo as chamas ameaçando o evento, uma senhorita que se apresenta como historiadora faz uma rápida síntese do que estava acontecendo para logo em seguida exibir sua sapiência em forma de pergunta. A diretora do filme toma a palavra e aproveita para tentar explicar o inexplicável. Outra professora toma o microfone e diz o óbvio. A Secretária faz um pequeno discurso ideológico. Uma das palestristas, a que fez uma tese de mestrado sobre as putas e que disse ter nojo de pensar naquele bando de homens enfiando o sêmen numa mesma mulher, estava acabrunhada. Deve ter identificado na fala de alguma das raposas mais velhas alguma crítica intolerável para suas pretensões acadêmicas ou coisa parecida. O clima está ótimo. O sujeito que escreveu um livro sobre cafetinas (e que vai autografá-lo depois do evento) tomou a palavra para relatar sua epopéia pelos bordéis e o quanto foi difícil e extenuante o acesso às tais empresárias do sexo. O que, aliás, é crime lembrou ele, mencionando o nosso honroso Código Penal. Elogiou a todas as palestrantes como um perfeito homem intimidado e cordial e voltou para seu canto. A psicanalista faz sua parte. Como as outras senhoras defende as pobres mulheres da noite. Lembra que todos temos as nossas perversões secretas e que em questões sexuais ninguém é santo. Praticamente todas parecem defender a causa das putas. Citam a Holanda, a Dinamarca etc, onde elas são profissionais iguais às das fábricas, das lojas de cosméticos, dos ministérios, das universidades etc. Sinto que lutam com unhas e dentes para ocultar e para não desbundar no viés feminista, mas sempre que mencionam o tesão e a sexualidade masculina o fazem como se ela fosse uma distorção cultural ou então gerada pelo mundo capitalista. A vontade masculina de foder parece ser para elas uma anomalia, uma tara fora de controle que deve ser manietada e constrangida – nos mesmos moldes que foi a feminina durante séculos. Os homens presentes estão de joelhos e de cu apertados. Há alguma prostituta presente? Perguntou a coordenadora do evento. Ninguém levantou a mão. Uma menina bem jovem e nitidamente neurastênica caminha de um lado para outro esbravejando contra o sujeito careca que disse ter chegado recentemente de Nova Iorque e que estava assustado com o discurso feminista vigente e com a ingenuidade das declarações das palestrantes. O circo pegou fogo. Resmungos, impropérios, histerias. Uma professora palestrante tomou a palavra e lançou contra o sujeito o discurso clássico e falacioso dos anos 60. E a platéia aplaudiu. As chamas se espalham. Os bombeiros aparecem. Bom gente... Vamos ficar por aqui hoje??? A Secretária tomou a palavra novamente para fazer o clássico e burocrático “fechamento” e aproveitou para relatar que esteve na Nicarágua, que trabalhou com as putas de lá que se regeneraram após a revolução etc. Disse também que mulheres de países nórdicos, (loiras como ela) costumam ir para uma determinada ilha do Caribe para prostituir rapazes morenos etc, etc. Aí as feministas engoliram em seco, mas enquanto buscavam no adestramento acadêmico alguma teoria pós conceitual que justificasse aquela "imoralidade", muita gente já estava em pé. O sujeito sentado ao meu lado estava louco para lembrar a teoria de Engels de que a puta da rua só se difere da puta do lar porque vende seu corpo a muitos por instantes, enquanto que a puta do lar o vende a um só para toda a vida. Também gostaria de lembrar que muitas daquelas putas que o filme mencionava enriqueceram às custas de apropriarem-se dos míseros salários daqueles pobres e desamparados trabalhadores. Cochichou-me que na atualidade as putas vão aos garimpos e em troca de uma trepada mixuruca, em pé ou atrás de uma árvore arrancam do garimpeiro a única pepita que ele precisou um ano para encontrar... Mas o tempo havia acabado. Em síntese, foi um show. De todos aqueles umbigos enrolados uns aos outros se constatou novamente que tanto a repressão sexual como a distorção intelectual de nossos pensadores é muito mais grave do que se imagina. Que o diálogo não é coisa fácil e que a tendência é o mundo morrer sufocado e atormentado por monólogos intermináveis, quase todos fundamentados nas neuroses, nos medos e nos transtornos de personalidade de cada um dos bem intencionados (ou não) monologantes.
Ezio Flavio Bazzo