Recebi notícias de meu correspondente em Myanmar a respeito do grande terremoto de ontem, que causou estragos imensos por todos os lados. Dizia estar me escrevendo de Naipidau, recém chegado daquela planície maravilhosa onde estão edificados os famosos mil templos de Bagan... Mas Mianmar, - me alertava ele -, não pense que é a mesma Birmânia onde viveu George Orwell. Ou você não leu Dias na Birmânia?
Depois de descrever os horrores que os terremotos causam, não apenas fora, mas dentro, fez um breve comentário sobre a cena que mais lhe causou espécie: um grupo de quinze ou vinte monges (da confraria que apoia a ditadura militar vigente), uns ainda com a tigela de mendicância nas mãos, rezando e chorando diante das ruínas de um dos tantos e mais importantes templos do Sudeste Asiático. Tratava-se - diz ele - de um choro infantil, histriônico e de derrota e, pior, impregnado de uma fé doentia parecida à daqueles caminhoneiros aí no Brasil que escrevem no parachoque traseiro de seus caminhões: mesmo que me pisoteies e que me humilhes, em ti confio minha vida...
Do templo, desgraçadamente, não havia sobrado praticamente nada. Toda aquela arquitetura rococó, cheia de cores, de figuras míticas, femininas, trans e assexuadas, aqueles panos impregnados de incenso, tapetes e cálices, textos em alto relevo e em birmanês nas toalhas; cânticos e partituras em sânscrito; um manto sobre a Roda do Dharma, uma Flor de lótus em ouro ao lado da famosa Árvore Bodhi; uma edição antiga do Kama Sutra e, bem visível, a também sagrada Tigela de Mendicância... (que parecia esculpida em ouro ou em outro metal precioso e levava uma inscrição em birmanês, bem no centro. O que estaria escrito lá?). Pedaços de uma daquelas Rodas de Oração, trazida de uma Estupa de Katmandu, girando sózinha; e muitas estatuetas de Buda, sempre careca e barrigudo, umas em marfim outras banhadas em ouro, inclusive uma de Kali e também de outros avatares menores,...... tudo estava enlameado, profanado e em pedaços sob ruínas e escombros... insinuando o fim das tradições dhármicas e até mesmo uma espécie de 'Naraca'. Nem precisava ser cético e maledicente para formular uma ironia...
Enfim, tudo lembrava o recente terremoto que também destruiu templos milenares no Nepal... e, no meio de todo aquele horror, confundida com o som das sirenes das ambulâncias, parecia ressoar por toda a Birmânia, chegando às fronteiras da Índia, da Thailandia, do Triângulo do Ouro, do Laos e até mesmo do Vietnã... a frase miserável, odiosa e paradoxal.., a mais submissa, subalterna, resignada e reacionária das que se conhece: apesar desta e de qualquer outra desgraça, nós sempre confiaremos em ti...
https://www.youtube.com/watch?v=x9HBbgCsC44
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