Minha caminhada de hoje foi visivelmente diferente da dos outros dias. Com a proximidade do Natal está tudo mais histérico e agitado. A cidade se parece ainda mais com um imenso orfanato, com uns órfãos paparicando e adotando temporariamente outros... E tanto os carros como os motoqueiros parecem querer atropelar alguém. Há donas de casa, meio estropiadas, brigando até com as sombras enquanto vão esfregando com brutalidade o portal das janelas. Muitos souvenires made in Hong Kong... Nada é mais melancólico do que testemunhar a pequena burguesia e até o proletariado fazendo de tudo para imitar e confundir-se com os novos ricos e com os ladrões clássicos, já estabilizados...E, como em todos os anos, chegam centenas de mendigos de todos os Estados que, quase felizes, acampam em frente aos mercados e embaixo dos flanboyants. Das padarias vem até a pista um aroma delicioso de açúcar queimado misturado ao cheiro horrível de omeletes esquecidos no fogo. Velhotes já sem muito equilíbrio como se estivessem pisando em espinhos, passam pelas sombras, cumprimentando até as árvores, tropeçando até em palitos de fósforos e de mãos dadas com mulheres bem mais jovens que, visível, secreta e miseravelmente já fantasiam o espólio...
Mas o dia está estupendo.., Blocos de nuvens polimorfas contrastam com o azul anil de um céu imaginário e vazio... E não apenas as borboletas de asas amarelas mas também as azuis e os carcarás planam, sem rumo e preguiçosamente de um lado a outro das quadras, levados pelo mormaço desse simulacro de deserto...
Uma moça de uns 18 anos aparece do nada e vai esquiva e abobalhada, de boca aberta, fazendo bolhas com um chiclete... Um de meus demônios prediletos se apresenta e me diz: Bazzo, essa aí, pelo jeito, ainda nem sabe que tem um clitóris!
Ao mesmo tempo uma mendiga atravessa o gramado para exibir-me uma receita e pedir que lhe compre os remédios. Por curiosidade conferi a lista dos medicamentos. Todos de laboratórios estrangeiros que as máfias farmacêuticas cobram vinte vezes mais do que valem... Mostrei-lhe os dois bolsos vazios mas, como ela continuava me olhando meiga e fixamente nos olhos, senti-me subitamente culpado e retirando do bolso traseiro uma nota de cem a enfiei em suas mãos. Ela, pela semelhança da nota com a de dois reais, nem se abalou... e seguiu insistindo na necessidade de comprar os remédios. Não lhe disse nada, mas pensei: minha senhora, para o seu mal, para o meu mal e para qualquer tipo de mal, não há remédio nenhum no mundo... Nas farmácias, só há placebos superfaturados para presumidos...
Uma cuidadora free-lance empurra a cadeira de rodas onde uma anciã cheia de anéis, com a cabeça levemente caída para a direita, dormita... A cena é de horror... Sigo minha caminhada. Um homem ainda jovem vai marchando na direção norte, olhando para a calçada como se tivesse perdido um botão da camisa, uma lente de contato ou outra coisa minúscula qualquer e ia discutindo com um interlocutor imaginário. Levava uma fita vermelha amarrada no punho direito. Devia ter escalado as cercas do "manicômio" de Taguatinga... (pensei).
Já no retorno, mas pelo outro lado da quadra, surgiu dos jardins suspensos, com orquídeas floridas e de todas as espécies, uma mulher estupenda dentro de um short minúsculo e de uma blusinha bege de seda italiana... Ia calmamente, lançando juras de amor a seus dois cachorrinhos, tão simpáticos como ela, um lhasa apso e um terrier tibetano. O mesmo demônio que se me havia apresentado minutos antes voltou a indagar-me: Bazzo, e essa aí, quanto estaria cobrando?
No semáforo, um dos milhares de venezuelanos (pro-yankee) exilados, levantava um cartaz implorando ajuda e apostando que, (com o conflito da Guiana) e com a ajuda dos mísseis do Biden e dos ingleses, em breve, poderá voltar para casa...
Por fim, e já quase chegando em casa, deparei-me com o Mendigo K enrolado na bandeira do Hamas. Cinicamente me desejou um feliz ano novo, mas no dialeto carcamano lá de minha infância: "Buono principio e Buono fim..." Depois, aproximando-se, cochichou-me: Mas, Bazzo, me diga uma coisa: se Cristo realmente existiu e se era judeu, então seria cúmplice das matanças lá na Faixa de Gaza e até os festejos do dia 25, são, na verdade, uma festa sionista???
Bela crónica, camarada Bazzo! É a cara do mundo! Melancolicamente assustador!
ResponderExcluirAh, antes que esqueça - FELIZ ANIVERSÁRIO, caro e querido Bazzo! Muitos anos de vida, ironias, desconfianças, sagacidade , andanças pelo mundo, olhar de lince, e amor.neste coração vagabundo !
ResponderExcluir74 anos nesse circo de horrores não é moleza hahahahaah
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