Como já lhes disse umas mil vezes, aqui na capital da república, quando chega o Natal e o Fim de Ano, chegam também levas de mendigos, de indigentes e de famílias fodidas de todo o país, para ver se faturam alguns trapos e sapatos velhos. Normalmente são incentivadas a virem para cá pelos prefeitos, governadores, delegados, padres, Ongs e outros embusteiros que comandam os municípios e os estados... Uma espécie de 'devir perpetuo', de limpeza étnica temporária disfarçada de filantropismo. E não pensem que são poucos! São muitos, atrapalhando o trânsito e de todos os perfis. Negros, brancos, albinos, ciganos, obesos, esqueléticos, ex coroinhas e ex presidiários, índios, moças com jeito de freirinhas e outras com trejeitos de pistoleiras profissionais. Velhotes decadentes e jovens parrudos, cortadores de cana free lance e criadores de cabras... Há de tudo. E, o mais patético dessa desgraça, é que quase todos acreditam que a miséria que experimentam e vivem é mais um dos caquéticos desígnios de Deus.., e a paciência que demonstram ter, diante da indiferença geral, é inigualável. Seriam leitores de Sêneca?
E o Mendigo K. nestes períodos, com sua camisa azul, Dudalina, funciona mais ou menos como um cicerone para eles: camaradas, - diz em tom professoral - prestem atenção. Aqui é a capital da república, não é a Terra Prometida.... Neste mercado aí, odeiam e chutam mendigos... O roubo de um chocolate lhes custará uma surra e 4 anos de cadeia... Esse pastor aí, já foi proxeneta e traficante! Aquele padre é chegado em adolescentes! Aquele taxista ali, apesar de já ter vivido nas ruas como nós, não é lá boa gente... E nesta quadra há câmeras por todos os lados... Aquela padaria costuma dar sanduíches de graça aos policias para que façam ronda por ali. Nada de cagar e de trepar nas ruas, pois há beatas e padrecos detrás de todas as persianas... E por aqui, vocês sabem, qualquer Barnabé - mesmo analfabeto e sem aportar nada à cidade e nem à civilização - ganha uma pequena fortuna mensal. Sim, são geneticamente "mãos de vaca" mas, diante de uma ou duas lágrimas amolecem o coração (mesmo os de pedra) e abrem os bolsos... Portanto: a simulação é tudo. E lembrem-se: apesar do teatro de felicidade dessa gente, chacun a une blessure secrete dans laquelle il se réfugie...
Depois de dar esse breve sermão aos forasteiros e de ironizar o projeto demagógico do governo, chamado RUAS VIZíVEIS, (Estão loucos? Querem agora arrancar-nos a única coisa que temos que é a rua? Querem enfiar-nos aonde? Numa fábrica? Numa 'minha casa minha vida' de 9 metros quadrados? Numa penitenciária?) abriu o livreto de João do Rio, que levava no bolso e recitou:
Camaradas: "Tudo se transforma e tudo varia - o amor, o ódio, o egoísmo... Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia. Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua..."
Fez um breve silêncio e concluiu:
Não se intimidem. Todo esse teatro é uma farsa! Um folclore patético, uma falsificação esdrúxula da história que não tem legitimidade alguma, que terminará à meia noite e que se repetirá o ano que vem... ad infinitum, porque o cão volta sempre ao vomito... Fiquem tranquilos porque, depois de tudo, como vocês sabem muito bem,
"O trabalho honrado não dá fortuna a ninguém. Todos somos refinadíssimos malandrins, e se não nos esganamos fisicamente, nos esfaqueamos e nos assassinamos moral e monetariamente a cada instante. O mais bandido, o mais cruel, o mais patife é quem vence..."
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