segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

De Gounod, e de Franz X. Gruber... a Astor Piazzolla...


 

Ontem, domingo, com a cidade já entrando na clássica depressão de 'fim de ano', tonta, tropeçando nos próprios calcanhares, caindo pelas beiradas, reencenando traumas infantis imaginários e em clima de surto... (Bah! Nada é mais brochante do que ouvir um velhinho ou uma velhinha de 80, nestas épocas de teatralidade natalina, choramingando porque aos sete anos de idade o Papai Noel lhe negou um pirulito...) fui surpreendido por um morador de rua, em farrapos, embaixo de minha varanda, quase um faquir, tocando, sem partitura em um instrumento de sopro improvisado, nada mais nada menos que Romeu e Julieta, seguida da Ave Maria, as duas de Gounod, e por fim, a clássica, melancólica, 'ilude babaca' e ridícula Noite Feliz, composta por aquele pueril professorzinho austríaco conhecido por Franz X. Gruber

Quando o vi, estava na esquina de um prédio e ia se deslocando sutilmente com o bocal do instrumento nos lábios, na direção das janelas semi-abertas dos outros prédios, - onde, em umas tremulava a bandeira sionista e em outras a do Hamas... - como se quisesse afetar com suas melodias a todos os moradores da quadra. Claro, as velhinhas que são taradas por um Papai Noel, (que, aliás, este ano abandonou a fantasia da Coca Cola e está vestido de branco) ainda enroladas naqueles roupões anti-sexuais, numa espécie de vertigem ilusória, batiam palmas, lhe jogavam moedas e lhe desejavam uma linda, amorosa e inesquecível madrugada, no dia 24. Houve até uma que, - depois de dizer-lhe que irá  passar as festas em Maceió, antes que a Braskem (a mesma que, dias atrás, esteve lá na COP 28 junto com outros apóstolos internacionais defendendo o meio ambiente) enterre definitivamente aquele pobre  vilarejo -  lhe garantiu que Cristo (como Godot) está para chegar e que ele - o mendigo -, seria levado para sentar-se ao lado direito do Pai Eterno... Muitas, muitíssimas baboseiras semelhantes de arrepiar... E ele, que teve os avós e os pais nascidos em porões da pequena burguesia ou na sarjeta (como ele próprio) e que, para sobreviver, passou por todas as putarias do mundo; que sempre que dava um passo além do rebanho tinha que lutar com a ralé que queria puxá-lo de volta para à mediocridade, ele que conhecia, como ninguém a hiena que hiberna nas tripas dessa raça patética, fingia acreditar naquela pantomima beata e febril e seguia soprando aquele misterioso instrumento, mas com fogo nos olhos... Do meio das nuvens surgiu inesperadamente, uma trovoada... A cena, acreditem, superaria a todas as criadas e encenadas artificialmente por Eurípedes ou por outros clows da modernidade...

Quando me viu, fez aquele gesto subalterno e cabotino dos músicos manipuladores de cabarés, como me implorando uma ajuda.., um pix.., qualquer coisa... Achei que ele realmente a merecia e atirei-lhe, como quem joga pérolas aos porcos, a partitura completa de OBLIVION, de Astor Piazzolla...

Apesar de toda a baboseira vigente, o domingo estava metafisicamente ganho...

Mas seria hipócrita se não admitisse que me envergonho de não possuir a leveza das nuvens e a profundidade dos abismos...





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