"Quando morre, o louco procede exatamente como um morto - o que não deixa de ser surpreendente.
Vejam-lhe as narinas há pouco arfantes e agora dois abismos dando para o nada, frias cavernas em que não me arrisco e mesmo fujo de espiar, tocado por esse hálito mefítico que vem de suas profundezas. O seu grito parou nessa calmaria suspeita que é o seu rosto da família, meireles, braga, bragança, álvares de albuquerque, na verdade o inominado e inominável, os olhos de espanto enfim fechados para a realidade que nunca aceitou e na qual só via pássaros e pássaros. O que eram suas mãos terríveis agora ali dorme tocado pelo vento da eternidade, que nada tem a ver com a brisa que lhe move os cabelos e lhe aviva por instante os cílios e as pálpebras: são essas mãos crispadas na sua imobilidade tudo o que resta do absurdo ser permanentemente à espreita na sombra, dentro do seu sol negro. E As flores, tantas e tamanhas, cobrindo o que ainda possa porventura lembrar a loucura do morto, como se a família não acreditasse na morte da loucura e temesse, como seria justo, que o rebelde mais uma vez se rebelasse e se pusesse de novo a rir de si mesmo e dos outros.
Quando morreu o filho do coletor eu fui curioso espiar a sua morte, apalpar disfarçadamente a calma e a languidez de quem não tinha nunca tido um instante de repouso e vivia a medir a cidade com seus passos intérminos e sem rumo. Eram apenas um rosto e um par de mãos como os de qualquer morto sem maior importância, ali jogados sem o seu misterioso jogo de molas e cordas, em tudo semelhante ao sono de um burocrata em paz com a sua burocracia. A mandíbula quieta era bem o retrato do seu imperturbável silêncio (jamais ninguém lhe ouvira voz nenhuma) - mas dentre aquelas rosas emergiam uns pés e uns dedos que, não sei se por autosugestão minha, pareciam ali perplexos e perdidos no ar, sem se darem conta ainda da extrema gravidade daquele instante eterno..."
(Ver: Cartas de viagem e outras crônicas, páginas 70,71, José Olympio EDITORA)
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