O
mendigo K., atravessava a cidade a pé quando nos encontramos. Estava com cara
de insônia. Chuviscava. Um chapéu de pano preto escondia-lhe parcialmente a
testa. A mídia inglesa denunciava o Vaticano de ter faturado bilhões em negociatas escusas com Mussolini... enquanto da garagem de cada prédio saiam filas de carros com funcionários públicos ainda sonolentos.
Fez uma ironia qualquer com aqueles escravos do estado e do relógio e desenrolou uma página
de jornal que levava em baixo da camisa para mostrar-me a foto de um sujeito em
transe acendendo seu improvisado cachimbo de crack...
-
Veja a expressão de delirio e de felicidade desse cara! - Disse, olhando demoradamente para aquele
sujeito entrincheirado num beco, os braços e as mãos... puros ossos, uma ferida
imensa nos lábios... E prosseguiu:
Quê
porra de mecanismo é esse que a simples fumaça de uma pedra pode causar? O quê
acontece verdadeiramente nas carnes do pulmão e nos ligamentos cerebrais quando
recebem a fumaça? Quê porra de química é essa? Quando é que saberemos a verdade
a respeito do mundo que trazemos por detrás de nossos ossos?
E
agora, querem curá-los! Logo agora que transcenderam a família, o trabalho, a
mesa com oito talheres, as camisas engomadas, o papel higiênico com cheiro de
sândalo... O medo de morrer! Logo agora que conseguiram trocar o travesseiro
por um tijolo... Curá-los de quê? Dessa "felicidade"? Oferecer-lhes o
quê depois de curados? Como convencer-lhes que o tédio e que a melancolia
doméstica são mais saudáveis que o frenesi do abismo? Ou que a longevidade é mais
honrada que a morte precoce?
Veja como dizem NÃO a toda liturgia burocrática e a tudo o que o establishment lhes oferece:
O
doutor: em dois meses você estará completamente desintoxicado e curado!
O
governador: Apenas queremos ajudá-lo a resgatar seu papel de cidadão!
O
político: Te esperamos lá no comitê, para filiar-se ao partido!
A
freira: Deus e seu bondoso filho, estão prontos para recebê-lo de volta!
O macrobiótico: Experimente a dieta dos seis dias de arroz integral!
O macrobiótico: Experimente a dieta dos seis dias de arroz integral!
Um bestalhão beato que passa pela rua: Volte para sua mãe, para seu pai, para seus irmãos!
O
comerciante: Curado, podes contar com uma cesta básica mensal!
O anti-psiquiatra: Agora já podes fazer o caminho inverso, do Self para o Ego!
O anti-psiquiatra: Agora já podes fazer o caminho inverso, do Self para o Ego!
O
pastor: E afastaremos a satanás de teu corpo!
A
mãe: Quero que você retorne para casa e para a família!
O presidente de Cingapura: Nesses casos, só a pena de morte!
O presidente de Cingapura: Nesses casos, só a pena de morte!
A
assistente social: A partir de agora você será outro!
O
sindicalista: Vamos orientá-lo a recolher o ISS!
O jornalista: O que você está sentindo neste momento? É grande sua tristeza? Quando poderemos fazer uma matéria?
O advogado: Por trinta pedras, entro com um habeas corpus! Aliás, com um habeas ossus!
O jornalista: O que você está sentindo neste momento? É grande sua tristeza? Quando poderemos fazer uma matéria?
O advogado: Por trinta pedras, entro com um habeas corpus! Aliás, com um habeas ossus!
A
polícia: Se não sair dessa, te apagaremos na próxima chacina!
O
psicólogo: Fale-me um pouco de seu desejo e de sua infância!!!
O cara da funerária: Aqui estão nossos telefones...
O cara da funerária: Aqui estão nossos telefones...
Desintoxicado
de quê? Cidadão de quê? Partido porra nenhuma! Quê Deus? Quê mãe, que pai, que irmãos? Quê cesta? Quê
Satanás? Quê casa, quê família!? Não quero ser Outro! ISS um caralho! Não
faltarão chacinas! Desejo? Infância? Quê infância!???
Fez
um longo silêncio, tirou o chapéu, colocou a mão sobre meu ombro e desembuchou:
Aqui entre nós, sem demagogia e sem falsos republicanismos, toda essa gente já era órfã de tudo e já estava "perdida" bem antes de aparecer o
crack. Enquanto você e os de sua trupe bebiam capuchinos com pão de ló por aí, às cinco da tarde, cada um daqueles miseráveis já estava apodrecendo em suas tocas ou em seus cortiços. Como votavam e como serviam para falsificar estatisticas, fazia-se de conta que eram "soberanos", donos de si, que podiam injetar-se nas veias até
merda pasteurizada, se quisessem... Mas, quando, já na fase terminal, vieram exibir nas ruas sua podridão e suas misérias.., então todo mundo começou a ficar comovido, irritado, indignado, envergonhado... Um surto de humanidade brotou repentinamente de nossos corruptos e descompensados corações e lhes oferecemos de graça essa purificação compulsória, essa espécie de passagem de volta para nosso meio, para esta outra parte, a "parte boa" do manicômio social, da qual já estavam excluídos bem antes ainda de nascerem...
(A ilustração é do chargista espanhol El Roto)
Nenhum comentário:
Postar um comentário