[... Vocês, que escrevem, sabem que tudo é decidido pelas palavras: tanto o valor de um poema como o destino de um homem...]
Dezsö Kosztolányi, IN: O tradutor cleptomaníaco, p. 8
[... Vocês, que escrevem, sabem que tudo é decidido pelas palavras: tanto o valor de um poema como o destino de um homem...]
Dezsö Kosztolányi, IN: O tradutor cleptomaníaco, p. 8
O casal de anarquistas uruguaios que fotografava o prédio, vendo aquelas bobagens, resmungava indignado: Ni pátria, ni Dios y ni Patrones...
A noite e o temporal despencaram sobre a colina e sobre o barraco que resistiu bravamente ao temporal (sem raios), às lufadas da ventania e às pedras gigantescas, fingindo-se de mortas, mas ansiosas por rolar em direção ao mar bravio e por sobre aquela cambada de parasitas, com suas redes, barcos e pranchas... A luz se foi... e que falta faz uma caixa de fósforos! As ondas do mar triplicaram de altura e de branquitude. Até as gaivotas silenciaram e desapareceram. Um principio de noite parecido ao fim do mundo. O bambuzal da frente ia ao solo como um dervixe embriagado. Olhando para essa maravilha assustadora, qualquer analfabeto lembraria daquilo que cacarejava Chateaubriand: 'aqueles que nunca navegaram têm dificuldade para entender o que se sente quando, do convés do navio já não se vê mais do que a face austera do abismo'... Pela manhã, arrumar as bagagens, meter-se no meio do vendaval e partir... sem ilusões, porque, como afirmava Cossery, a liberdade é uma noção abstrata e um preconceito burguês...
Nem mais sinal das tribos carijós!
No espólio das almas, sobrou apenas o nome: Jurerê.
Uma espécie de bairro de Miami, dos arredores de Vancouver, de um Paraíso de novos ricos. De uma vila fantasma... Mansões estupendas, quase abandonadas com seus alpendres e janelões enferrujando. Seus donos? Ninguém sabe. Cinco ou seis, - é unanimidade -, pertencem a jogadores de futebol, mas que nunca apareceram por aqui. Metade da vila é burguesa, metade proletária! Dizem que o traçado tem a mão do velho Niemayer e os jardins, a do Burle Marx... Enfim, como disse recentemente o Gabeira, falando do orçamento governamental: uma ficção...
Enquanto isso, ali além da restinga, as convulsões e os gemidos obsessivos do mar. Na dita parte internacional, o pior strudel de todos os tempos. E na areia, os homens com suas bolas e elas com seus dois hemisférios torrando ao sol. Que genes de caranguejos!
Gaivotas e urubus banqueteiam, quase amistosamente, a carcaça de uma tartaruga...
Lá pelas seis da manhã de todos os dias, um velhinho já aniquilado pelo sol e pela maresia, vem com seu "caça tesouros" eletrônico, vasculhando as praias. Enterrei uma moeda de vinte centavos em seu caminho e, quando seu instrumento a identificou, ele passou mais de meia hora lá, fucinhando cuidadosamente o subsolo, desconfiando que os caciques carijós ou algum pirata muçulmano pudessem ter enterrado ali um acervo de moedas bizantinas...
Em cada casa uma TV ligada e os gritos da turba. Além do folclore da troca de governo e da COPA lá em Qatar, tem também o terremoto na Ilha de Java, o arco-íris na bandeira dos pernambucanos e a nova visita da Ômicron... Haja saco!
Finalmente choveu!
Nenhuma desculpa é mais conveniente do que esta para, enfim, livrar-se desse deleite proletário. O mar! A praia! O sol! Os cremes. A exibição das ancas, as areias e os sais entrando por todos os buracos, as aguas vivas boiando e as bocas de esgoto despejando aqui e ali os seus mistérios...
Um ou outro forasteiro de máscara passeando de mãos dadas com suas megeras indomáveis .... Vendem milho ao longo do arreião, espiga que para os hermanos argentinos é choclo. E a mão de obra, "escrava", curiosamente, é quase toda da América Latina. Dizem que as baladas acontecem lá pelos lados da Praia do Forte, e que, de vez em quando, petimetres de todos os pedigrees e de todos os lados, aparecem por aqui, com seus carros e relógios importados e também com suas mamães... Dias em que a parte proletária da vila, excitada e curiosa, com um sentimento de ter sido expulsa do mundo, tem dificuldade para dormir...
Ah, - resmunga um pescador - e se o "novo" governo inventar de, além da Reforma Agrária, fazer também uma Reforma Urbana? E se algum louco resolver dar uma geral lá na Receita Federal?
Ora! Mas que ninguém se inquiete... Tudo é sal do mesmo saco! Na vida, além do chuá chuá das ondas, não há nada...
Tudo são ondas, balelas, masturbações psicofísicas e verbais...
"Uma vez por dia,
até os relógios parados dizem a verdade"(P)
Enquanto os Ministros do STF são vaiados e chingados em Nova Iorque, pelos chamados bean eaters brasileiros, aquele balneário egípcio continua recebendo jatinhos de trapaceiros e de uma mesma facção globalizada, para a tal COP27. Não apenas riam, mas observem o perfil daquela gente que está lá para "salvar o planeta!" Não, não é nem necessário ser um vidente para descrever em detalhes a trajetória passada e futura de cada um deles... Bajulações mutuas; discursos cretinos; teatro mediático, com as tripas repletas de iguarias faraônicas... Ah, e a curiosidade imensa dos berberes e dos beduínos pelas acompanhantes profissionais e ordinárias que, de madrugada, passam eufóricas por suas tendas, dando gritinhos pedantes, comprando 'lembrancinhas', exalando aquele cheirinho de anis do Arak, enquanto, dos minaretes das mesquitas soam as orações ameaçadoras, desesperadas e melancólicas da turba muçulmana...
صباح الخير! وفقنا الله
E, enquanto isso, os "salvadores do planeta" se exibem, se esfregam, se seduzem e jogam pérolas nativas uns sobre os outros e também aos porcos. Se a 'discordância' entre eles sobre as chaminés, o envenenamento dos rios, dos pimentões e dos mares, é pura demagogia, apenas uma discordância performática, então, como não lembrar dos lutadores de circo do Império Romano e de seus respectivos torcedores?
E o planeta emplaca 8 bilhões de babacas! Mesmo assim, com medo da férula papal, ninguém se atreve a falar em Controle de Natalidade! Ora, discutir o arraso e a devastação de um paiol sem considerar a proliferação das ratazanas é ridículo! E discutir o meio ambiente sem falar em Controle de Natalidade é a mais descarada das fraudes!
Nas ruas daquele país, social e antropologicamente fascinante (conforme mensagem de um correspondente), a mendigada, descrente e cínica, acostumada às areias, aos ventos e às loucuras do deserto, se agita em busca de novas mentiras, de alguma moeda e de migalhas.
E não param de queimar incenso e babar sobre à democracia.
A essa ficção onde o que não é proibido é obrigatório...
Continua repercutindo entre os bandos (entre gente que menstrua e gente que não menstrua) aquela fala de uma jornalista a respeito da atual companheira do Lula. Estão achando que, além de misoginia, pelo comentário ter partido de uma mulher, é uma verdadeira heresia. Diz a jornalista que o papel da Primeira Dama deve restringir-se mais à alcova do que aos palanques.
Ora! isso é ridículo!
Enquanto vou ouvindo as bobagens que se diz a respeito, penso na pernambucana Ana Alexandrina que se indignava com a ideia de que a esfera política é para os homens e o espaço privado para as mulheres. (...) E na filha do Getulio Vargas, a Alzira Vargas que, em protesto à bizarra e patética condição feminina, recusou-se a vestir um tradicional vestido de noiva na cerimônia nupcial? (...) E na Olga Benário, que aquele baixinho de botas enviou de presente para Hitler? (...) E na Anita, filha da Olga, e amante do Deputado Carlos Mariguela até 1948, quando foi assassinado pela polícia. E na basca conhecida por Passionária. Também penso na Amélia Beviláqua que, lá pelos anos 40, tentou ingressar na Academia Brasileira de Letras mas que foi barrada por não ser homem. (...) Penso na Ana Campista que foi internada por seu marido (sob acusação de adultério) na Casa de Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, no Rio de Janeiro, em 1754, instituição que abrigava prostitutas em busca de recuperação espiritual. (...) Penso na minha tataravó, que inventei, e que teria vindo para a América no porão de uma caravela, escrevendo partituras e girando a manivela de um realejo... (...) Penso na feiticeira Maria Sabina, lá nas montanhas mexicanas, sacaneando os trouxas com seus hongos supostamente alucinógenos... Penso na Catarina Paraguaçu que, mais ou menos como a Malinche (no México) casou-se com o invasor Diogo Álvares e que mais tarde zarpou para a Europa no navio do comandante Jacques Cartier. (...) E as poesias eróticas da Gilka Machado? Penso na delatora da revolta dos Malês, Guilhermina Rosa de Sousa. E na Iá Nassô, que fazia parte da Confraria Nossa senhora da Boa Morte? E na Irmã Germana, que em Minas Gerais, passava horas, sem se mover, na posição de crucificada? E na Justina Maria do Espírito Santo que, com um cônego de Campos dos Goitacazes, teve um filho ilustre: José do Patrocínio. (...) E, claro, na também ilustre e famosa Luz del Fuego que, com frequência, visitava o serpentário do Instituto Ezequiel Dias, em Minas Gerais, e que na praia de Marataizes, gostava de desfilar de calcinha e bustiê improvisado com lenços? etc, etc, etc. (Fonte: Mulheres do Brasil, de 1500 até a atualidade)
Enfim, o comentário da jornalista, independente de ser misógino & machista, ou não, beira ao ridículo! Querer restringir o papel da Primeira Dama à alcova, neste momento estranho da pós modernidade, quando o que menos interessa às mulheres são as obrigações entre quatro paredes e sob os lençóis, é demais!...
E o fato do comentário ter emergido de uma colega de gênero, fez o Mendigo K lembrar-se do alerta de um conhecido pensador italiano, alerta que, principalmente nestes tempos, é bom levar em conta: sempre que uma mulher está rezando é contra as outras...
"Quando os dias ficam mais curtos, muitas pessoas se retraem, e 'pedir-lhes para serem ativos, indo contra os seus instintos biológicos", seria mais ou menos como um urso hibernando se sentiria se você quisesse que ele entrasse no circo, se erguesse nas pernas traseiras e dançasse por todo o inverno..." (p.135)
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Sabedores de que "pertenço" à turma da saúde mental, no meio das idiotices, das tristezas e da depressão do cotidiano, algumas pessoas me enviam mensagens perguntando a melhor maneira de escolher um psicólogo, um psicanalista ou um psiquiatra, que as possa auxiliar.
Sem lero-lero lhes respondo com uma única frase: aqueles que não leram O demônio do meio dia, de Andrew Solomon, não estão habilitados...
De uma semana para cá, depois que o Lula voltou a ser Presidente da República, tenho ouvido, em algumas manhãs, um grito - que lembra os estádios de futebol -, que vem lá do prédio que fica em frente à minha varanda: Bom dia Presidente Lula!
Não tenho ideia de quem é o gritador, mas acho até uma iniciativa simpática. É provável que seja um sujeito que, desde criança, veio ouvindo seu avô gritando: Bom dia Presidente Vargas! Depois: Bom dia Ilustre Jânio Quadros! Depois, seu pai: Bom dia meu general Geisel! Um pouco mais tarde: Bom dia meu general Figueiredo! Um pouco mais tarde: Bom dia Presidente Sarney! Depois, Bom dia Presidente Collor! Bom dia FHC! etc, etc, etc... profissão: bajulador! (mais dois milhões de votos e a promessa de um empreguinho no Palácio e estaria gritando, com a mesma desfaçatez): Bom dia Presidente Bolsonaro!
Bom dia Presidente Lula!
Mas, evidentemente, o Lula não lhe responde.
Só se ouve o eco de uma voz que o alerta: Se liga companheiro! O Lula não está mais preso! Está solto, seu babaca! Está arrumando as malas para dar um giro pelo mundo enquanto você fica aí como um idiota, enfiado nesse cortiço, ruminando tomates envenenados, gritando e esperando Godot...
Meu cachorro me olha irônico, senta sobre o traseiro, naquela posição elegante de Gizé e resmunga: Bazzo, você tem razão, a vida é uma canção que não tem sentido...
A mendiga explica, entre lamentos, que sua filha deixou de ser veterinária porque descobriu em si dons de manicure...
O Bolsonaro desapareceu e o Lula prepara-se para ir ao Egito. Quem é que não gostaria de ir ao Cairo? Nem que fosse só para ver as múmias,? Para dar um giro de madrugada, num daqueles barcos encantados, pelas águas do Nilo? Do Cairo a Luxor? Ao canal de Suez? Aos destroços imaginários da Biblioteca de Alexandria? Ou, pelo menos, para ver a casa onde nasceu Philippo Marinetti... e aquela página do Le fígaro com as beiradas comidas pelas traças, colada à parede: o Primeiro Manifesto Futurista...
Ah! O navio iluminado, as autoridades, os trapaceiros intercontinentais, uma estatueta de Cleopatra para hipnotizar os otários e o olhar falso e serpentino das dançarinas, a dança do ventre, o buraco estrábico do umbigo (sim, o nível de empoderamento de uma mulher se mede pelo grau de sofrimento e de tesão que ela consegue provocar sobre os cretinos!), a mendigada e os estafadores esperando ansiosos pelos Cartões Corporativos dos forasteiros no cais do porto... O Teatro da COP27, a suposta luta contra as chaminés, as tertúlias do clima... Mil e uma mentiras! Artimanhas geopolíticas com cheiro de harém e de lupanar... E nas suítes dos hotéis vagabundos, aqueles carpetes rechonchudos, verdes, odiosos, envenenados de porra e de lágrimas... Tudo com a cumplicidade de Thoth e de Hórus! Camelos ruminantes às margens... Enquanto o poetinha da comitiva vai improvisando 'poesias sociais' numa tentativa de disfarçar seu imaginário e seu cotidiano edificados sobre uma esterqueira burguesa. O aroma do narguilé e a Primavera árabe que não houve... Os souvenires em ouro, as miçangas dos sheiks e um pelotão de puxa-sacos traduzindo as bobagens anfitriãs, fotografando, babando, lhe carregando as malas e pagando as contas... Na Praça Tahrir, o mendigo que vê a comitiva passando, uns em calasirs, outros em paletó, outros em mangas de camisa, resmunga a frase de Bernard Shaw: Não adianta iludir-se, "o cão volta sempre ao lugar do vomito!"
"A morte - a rainha dos barbitúricos"(Calandrino)
Hoje, dia dos mortos, muita gente ficou preocupada temendo que as manifestações dos caminhoneiros fossem atrapalhar os rituais nos cemitérios; que fosse faltar flores através das quais os vivos, ano-tras-ano, procuram ajustar contas com seus parentes... Mas, foi apenas um temor passageiro: a polícia, meio na porrada, meio na demagogia, desobstruiu a maioria das estradas e houve flores para morto nenhum ficar chateado... Lírios, rosas e até hortênsias azuis...
O Mendigo K. apareceu por lá com um punhado de Jacintos sob o braço, e ia discutindo o significado e o preço dos crisântemos com uma velhinha toda de preto. Pararam por uns instantes diante de um cruzeiro para que ele lhe mostrasse três fotos do cemitério egípcio Al Qarafa, que havia recebido de seu irmão que vive no Cairo.
Quando nos cruzamos, no meio das tumbas, ele riu em minha direção e meio envergonhado e meio em sátira, murmurou a frase atribuída a Cristo e que é também título de um dos livros de Samuel Rawet: Que os mortos enterrem seus mortos!
Não o vi mais. A velhinha, por sua vez, ia ziguezagueando sob a chuva, resmungando e choramingando por entre as lápides.., Sim, era um choro tímido, mas de imensa solidão, um choro que qualquer um percebia, não tinha nada a ver com os hóspedes daquele lugar insalubre e tenebroso...