Isto, a República de Platão não previu...

"Um tolo (um analfabeto, um ignorante) pode jogar uma pedra na água que dez sábios não conseguem recuperar".
Samuel Rawet

O mendigo K que estava desaparecido, surgiu ontem nos fundos de um  pequeno mercado, rindo às gargalhadas com um jornal nas mãos. Batia no para-brisa dos carros e mostrava para os motoristas as manchetes das últimas duas pesquisas eleitorais onde Lula aparece em primeiro lugar. Onde ele sozinho, e preso, tem mais votos do que todos os outros (soltos) juntos. Os motoristas ficavam visivelmente irritados, não sei se pela forma com que estavam sendo abordados ou pelo resultado das pesquisas. De um carro que passava alguém lançou-lhe um grito: E o Cabral, que vai ser o mais votado para o governo do Rio?!!! Ele só ria. Lhe parecia uma coisa de outro mundo. Inexplicável e insólita. Seríamos um país de depravados? Com uma população mentalmente comprometida? Murmurava para si mesmo. E os outros candidatos?.., não se envergonham? Por que não abandonam o barco? 
Nossos eleitores não estão entendendo nada? Ou estão entendendo até demais e fazendo um desafio às classes alfabetizadas? Aliás, haverá algo mais terrível do que um erudito subdesenvolvido?... 
Seria uma apologia ao crime? Ou uma forma odienta de vingança de seus eleitores decepcionados e traídos querendo obrigá-lo a retornar ao poder, isto é, ao "lugar do crime"?  
Ou Lula teria para eles um valor que só eles conhecem? 
Que tipo de linguagem subliminar há entre eles, que as elites não captam? É importante lembrar que até Descartes, o grande Descartes, só amava mulheres que fossem estrábicas... 
Seria uma estratégia para implodir o senso comum? Estão fazendo ironia com o voto ou o que seria? Uma espécie de nostalgie de la boue? 
Ninguém sabe. 
Os especialistas em pesquisas estão atônitos. Será a primeira vez no mundo ocidental que um presidiário gerenciará um país do chão de um calabouço... Quem sabe este não seja um novo e revolucionário jeito e lugar de governo. Se todos os outros faliram e não serviram para nada, por que não experimentar este?
Pronunciou esta última frase, jogou os jornais para o alto e tirou da mochila um livro aos pedaços. Um livro de capa escura do mais estupendo escritor brasileiro: Raduan Nassar. Encostou-se numa kombi que estava estacionada lá e foi lendo teatralmente, em voz alta, um trecho que não sei se era da Lavoura arcaica ou de Um copo de cólera. 
"Não tenho culpa desta chaga, deste cancro, desta ferida, não tenho culpa deste espinho, não tenho culpa desta intumescência, deste inchaço, desta purulência, não tenho culpa deste osso túrgido, e nem da gosma que vaza pelos meus poros, e nem deste visgo recôndito e maldito, não tenho culpa deste sol florido, desta chama alucinada, não tenho culpa do meu delírio: uma conta do teu rosário para a minha paixão, duas contas para os meus testículos, todas as contas deste cordão para os meus olhos, dez terços bem rezados para o irmão acometido! e eu fui largando minha baba com fervor, eu que vinha correndo as mãos na minha pele exasperada, devassando meu corpo adolescente, fazendo surgir da flora meiga do púbis, num ímpeto cheio de caprichos e de engenhos, o meu falo soberbo, resoluto, e, um pouco abaixo, entre a costura da virilhas, penso, me enchendo a palma, o saco tosco do meu escroto que protegia a fonte primordial de todos os meus tormentos, enquanto ia oferecendo religiosamente para a irmã o alimento denso do seu avesso..." 
pp 204, 205 Círculo do livro S.A