México/Nicaragua... Ou: Ortega y Gasset não tem nada a ver com Daniel Ortega...

Na década de 70 a vida na cidade do México era uma maravilha. Aquele país e principalmente aquela cidade havia se tornado um ponto de referência para praticamente todos os "pensadores" do planeta. Os intelectuais argentinos, principalmente os da psicologia e os da psicanálise estavam exilados lá e dominavam as disciplinas na UNAM. Sartre apareceu em Tenochtitlán quase de surpresa e com seu estrabismo  e sua NÁUSEA, tumultuou aquela antiga capital do império asteca. Também Cooper, Laing e outros da anti-psiquiatria. Elias Canetti foi lançar um de seus principais livros; Mari Langer atendia em casa seus alunos de mestrado e de doutorado; as praias do Pacifico e do Caribe viviam repletas de gente do mundo inteiro, sem falar da idílica Isla Mujeres... Havia trens que partiam da cidade para Tijuana nos EEUU... Ou, do outro lado, para as pirâmides de Teotihuacan... As máscaras feitas no Estado de Guerrero... A prata de Taxco... Os 90 volumes da obra de Vargas Villa! As livrarias fervilhavam! Os pulmões entupidos e envenenados pela poluição! As luzes dos escaparates refletidas nas calles silenciosas de paralelepipedos um pouco antes da meia noite...As múmias de Guanajuato! O Campus da UNAM era palco das mais inusitadas e subversivas manifestações. O Buñuel sempre aparecia por lá fazendo seus filmes... O vulcão de Popocatépetl que fazia religiosamente suas ameaças à cidade, àquela Babilônia com seus 12 ou 13 milhões de almas... El Labirinto de la Soledad, de Octavio Paz! Quem não leu, não sabe nada daquele país... Apesar de ser imensa a comunidade judáica na cidade, havia um fascínio latente e uma simpatia especial pelo mundo árabe e principalmente por Arafat... Mais de uma década depois iriam dedicar-lhe  um monumento que ainda esta lá no cruzamento entre a calle Palestina com avenida Claveria... De vez em quando era lembrado o Massacre de Tlatelolco... Os violinos dos mariachis soavam até de madrugada lá pelos lados da Zona Rosa, às vezes no meio de tiroteios e até de terremotos. A águia pousada sobre um cactus e a serpente! Falava-se nostalgicamente de Antonin Artaud que havia passado uma temporada entre os tarahumaras e dos roqueiros ingleses que iam com regularidade fazer "viagens" com peyote ou com cogumelos" na casa de Maria Sabina, instalada no alto das montanhas de Hualtla de Jimenez. E nos finais de semana havia sopa picante de tortilla ou carne moída, com chili e tequila em frente a Livraria Gandhi... No meio de disparos involuntários, citações de Zapata, de Flores Magon e até de Pancho Vila... E tudo embalado pelo som de Corazon espinado, do Santana... Viva México! Mierda! 

Os peseros pelas ruas anárquicas. Duas mulheres peruanas vendendo peles de llamas... Los hijos de Malinche, a livraria Allende, as borracheras dos finais de semana... os metrôs entulhados, as feiras, o dia dos mortos, as tortillas caindo quentes das esteiras... O Fernando Savater mistificando o velho Cioran...O Parque de Chapultepec! Horchata de arroz lambuzando as páginas do terceiro volume de Freud... Meu gato vomitando instantes antes de um terremoto... O Teatro de Belas Artes com suas ruas paralelas e clandestinas... As palestras dos 'loucos' da Escola de Francfurt... A comunidade Nicaraguense exilada denunciando sistematicamente os crimes de Anastasio Somoza, cuja família dominava politicamente aquele país desde 1945. Foi nesse período (1979) que apareceram os Sandinistas, liderados por Daniel Ortega, que fizeram frente ao ditador. O México inteiro e a universidade inteira apoiava o movimento Sandinista. Inesquecível o jovem professor argentino que queimava incenso a Althusser, mesmo sabendo que Althusser havia sufocado sua mulher com um travesseiro...As aulas improvisadas do Dr. Santiago Ramirez... O professor espanhol que dava suas aulas sobre a História da loucura (Foucault) com sua cadela aos pés... Quem quer ir à Nicaragua? Na faculdade de ciências políticas, de filosofia e de antropologia disponibilizaram-se livros para inscrição de voluntários. Lembro de um homem esquelético que gritava num megafone: Quem deseja ir à Nicaragua lutar contra a família Somoza que anote seu nome aqui... Momento em que uma criança de uns 2,3 anos amarrada às costas de seu pai no estilo dos astecas pergunta-lhe: Por que no vamos a Nicaragua??? 
E não foram poucos os delirantes inscritos... 

E foi uma festa quando em 1979 soube-se que Somoza havia renunciado e fugido para o Paraguay. E uma festa ainda maior quando, em setembro de 1980, soube-se que havia sido assassinado por lá com um tiro de bazuca. A noticia insinuava que a bazuca havia sido lançada contra ele pela KGB. A mesma KGB que havia ido até o México, anos antes, (1940) para, na Praça de Coyoacan, executar o "camarada" Trotski, com um machado.

Hoje, Managua se lambuza novamente de sangue! As noticias sobre o sandinismo e principalmente sobre o Daniel Ortega não são lá muito revolucionárias. Parece que ainda não se sabe lidar com a Rebelião das Massas com métodos e protocolos diferentes dos da antiga família Somoza... E la nave va!!! 
Mesmo assim, sobrou-nos a convicção de que, como dizia aquele cínico florentino: "a paz como escravo, é mais pesada do que a guerra como homem livre..."