SAMUEL RAWET e as ruínas de Brasília...

"No mundo não há certezas, nem mesmo em geometria..."

Samuel Rawet 

(in Dez ensaios sobre Samuel Rawet, p. 171)

Enquanto ouço o governador, os engenheiros e outros lacaios da chamada "governança", - no meio das ruínas do viaduto que desabou ontem ao meio dia - , tecendo desculpas, justificativas e razões para o incidente surge-me o fantasma de Samuel Rawet, (autor do livro: O terreno de uma polegada quadrada) e engenheiro calculista que, junto com Niemeyer e o poeta Joaquim Cardoso, no auge dos delírios dos anos 60 construíram esta cidade nas coxas. 

Por uma casualidade e especulação literária alguém, em 2007, falando sobre um deles escreveu na página 158 do livro ao lado a seguinte frase: "Será que um dia ainda não testemunharemos uma hecatombe? Um horror de ruínas..? 

E quem é que em situações como estas não se lembra daquele outro engenheiro que ficou famoso por  construir prédios substituindo o cimento por poeira? E se você já frequentou os escritórios públicos que existem no subsolo da rodoviária aqui no centro da cidade já percebeu que tudo lá, paredes, piso e teto tremulam como se  estivéssemos diariamente sob os efeitos de um terremoto. Não precisa nem ser vidente para saber que cairá! Que cairá com certeza!

Sob o viaduto que caiu ontem, há muito tempo atrás havia uma espécie de puteiro onde muita gente "de bem" ia passar os finais de tarde. Tive um amigo jornalista que escreveu um livro de umas 300 páginas, todo lá, sobre aquelas mesas com toalhas xadrez e cercado por aquelas donas que nunca souberam verdadeiramente o nome de seus avôs...

Mas o que me pareceu mais grave neste acidente nem foi tanto o concreto que despencou, mas ouvir o linguajar e a dialética dos doutores e dos entrevistados. Que dificuldade em construir uma mísera frase! Onde essa gente cursou o Primeiro Grau? Que conflito com as palavras! Querem dizer uma coisa e dizem outra! Um ilustre engenheiro, inclusive, (justificando a queda do viaduto pela idade) comprou briga com a turma especialista em gênero, quando afirmou que Brasília, afinal, não é mais uma adolescente! As balzaquianas (que também não conseguem interpretar corretamente mais de um parágrafo ao mesmo tempo) se enfureceram por entender que ele insinuava que elas também já devem estar enferrujadas e que portanto fazer recauchutagens periódicas é fundamental... 
Todos da "governança" foram unanimes em colocar a culpa na chuva, na seca, nos ventos, no tempo, na ferrugem e até em algum terremoto imaginário. Um bêbado que assistia ao movimento dos bombeiros e da policia, esforçando-se ele também para não despencar igual ao viaduto, lançou o olhar para o além, e numa coreografia mística murmurou: Tudo por falta de fé! Quem o ouviu ficou se indagando se fé seria uma nova marca de cachaça... 

E por falar em terremoto, é bom que se diga que com um de 4.5 graus a cidade desmoronaria inteira. E não apenas os cortiços e os barracos, mas inclusive as mansões. Tudo falsificado! Da consciência ao concreto e ao mármore, tudo adulterado e corrompido! 

No auge da "invenção" desta cidade, o engenheiro Rawet, falando da estupidez vigente (já naquela época, 1959, 1960) escreveu: "ampliada um pouco, invadiu o domínio da idiotice, da vigarice, e se metamorfoseou em especulação e matéria para especulação..."