Uma espécie moribunda e de pobres náufragos...

Um dos assuntos que está inflamando a cidade nesta semana, diz respeito a surra que um marido milionário teria dado em sua companheira, uma atriz famosa, tanto por sua beleza como por seus trabalhos como atriz. Ele se justifica dizendo que só se defendeu e que em "mulher não se bate nem com uma flor!", ela mostra as radiografias de suas quatro costelas trincadas e um olho avariado por um cruzado. Os motivos?, Ora, não precisa nem ler os depoimentos, todo mundo sabe... Cada vez que se vai a um mercado, a um teatro, a um açougue, a um restaurante se pode encontrar lá no meio de todas aquelas porcarias, casais de neuróticos & otários se instigando e se ameaçando de, quando chegarem em casa, acertarem as contas... Enfim, para os machistas e para as feministas a semana está ganha. Os botecos estão tendo que ficar com os lampiões acesos até o amanhecer, porque os papos não têm fim... Para uns o milionário é um psicopata fdp, para outros a atriz é uma p. de primeira qualidade. E depois, todos sabemos, além da questão real, a plebe adora assistir novelas, cheirar as calcinhas e as cuecas da burguesia e discutir a intimidade dos milionários!

No anoitecer de ontem encontrei o mendigo K. nos fundos de um restaurante árabe. Estava com sua mulher, uma senhora até elegante, maltrapilha mas elegante que levava ao redor do pescoço um cachecol cinza de pura seda, chinesa, é verdade, mas de muito bom gosto. Diz que no princípio do inverno, uma madame estacionou a seu lado na rua e lhe presenteou com aquela peça.

Até eles estavam discutindo o caso do milionário e da atriz. Ele, falou-me cinicamente: como é que um homem com mais de sessenta anos ainda não aprendeu como bater numa mulher? Dar-lhe um cruzado num olho e ainda quebrar-lhe quatro costelas foi uma imbecilidade de principiantes! Ao que sua mulher retrucou: 

- Que me desculpem as mulheres, mas nós, sempre que apanhamos, sabemos muito bem as razões! Aliás, quando um homem bate numa mulher, ato covarde e miserável, está sempre cumprindo com um compromisso que fez com sua mãe. 

Como não entendi, ela explicou:

- Observe como as mães insinuam a seus filhos, desde pequeninos, que as mulheres são todas putas, interesseiras e etc. E como lhes imploram para que, quando crescerem e forem viver com uma, jamais façam o papel de babacas... Me entende? Com esse compromisso assumido com sua mãe, o homem está sempre pronto a dar uns coices quando se sente diminuído, traído ou humilhado..."

Confesso que fiquei meio abobalhado ao ouvir aquelas palavras vindas logo de uma mulher, daquela mulher... Caralho!.. Nem Freud foi tão profundo!!! Foi transcendente ouvir aquilo da boca de uma mulher mendiga que levava um cachecol de seda ao redor do pescoço...  O mendigo K. olhava-me meio sorridente, meio desconfortável e meio orgulhoso da elegância e do brilhantismo de sua esposa e, como se precisasse competir com ela acrescentou: 

- Talvez seja por isso que Nietzsche recomendava: sempre que vais encontrar uma mulher, não esqueça de levar um chicote! 

E explodiu numa gargalhada...