"Hoje eu gostaria de avançar em relação à ideia de que seríamos muito mais felizes, se aprendêssemos a ser mais pessimistas.
E, sob um ponto de vista completamente secular, eu gostaria de sugerir que as religiões, antes de enveredarem por nos prometer a salvação, são muito boas em ser pessimistas. Por exemplo, o cristianismo passou muito tempo enfatizando o lado mais obscuro da existência terrestre.
Mas mesmo dentro desta tradição sombria, o filósofo francês Blaise Pascal se destaca pela natureza excepcionalmente impiedosa de seu pessimismo. Em seu livro Pensees, Pascal não desperdiça oportunidades de confrontar seus leitores com provas da natureza resolutamente desviante, lamentável e indigno da humanidade.
Em um sedutor francês clássico, ele nos informa que a felicidade é uma ilusão. ''Qualquer um que não enxerga a variedade do mundo é ele próprio vaidoso'', diz ele. A miséria é a norma, ela afirma: ''Se nossa condição fosse verdadeiramente feliz, não precisaríamos tentar desviar de falar a respeito dela''. E temos de encarar os fatos desesperadores da nossa vida de cabeça. ''A grandeza do homem'', ele escreve, ''vem de saber que ele é miserável.''
Dado o tom, chega como uma surpresa a descoberta de que ler Pascal não é de forma alguma a experiência deprimente que poderia se presumir. O trabalho é consolador, emocionante e, às vezes, hilariante.
Para aqueles oscilando à beira do desespero, não poderia haver, paradoxalmente, um livro melhor para o qual se voltar do que um que visa reduzir a última ilusão do homem a pó. O Pensees - muito mais do que qualquer livro meloso enaltecendo a beleza interior, o pensamento positivo ou a realização do potencial oculto - tem o poder de induzir o suicida a se lançar do parapeito de um prédio elevado.
Se o pessimismo de Pascal pode efetivamente nos consolar, pode ser porque nós estejamos propensos à melancolia nem tanto pela negatividade, mas sim pela esperança. É a esperança - no que diz respeito à nossa carreira, nosso amor, nossos filhos, nossos políticos e nosso planeta - que é essencialmente a culpada de nos irritar e nos amargurar.
A incompatibilidade entre a grandeza de nossas aspirações e a dura realidade de nossa condição gera violentas decepções que torturam nossa vida e deixam marcas em nossos rostos. Daí o alívio, que pode explodir em arroubos de risos, quando finalmente encontramos um autor generoso o suficiente para confirmar que nossos piores presságios, longe de serem únicos, fazem parte da realidade inevitável da humanidade.
Nosso terror em julgar que nós somos os únicos a nos sentirmos ansiosos, entediados, enciumados, perversos e narcisista acaba sendo gloriosamente infundada e abre oportunidades inesperadas para a comunhão em torno de nossas realidades obscuras.
Deveríamos honrar Pascal e a longa linhagem de escritores pessimistas à qual ele pertence, por nos fazer o favor incalculável de ensaiar publicamente e elegantemente os fatos de nosso estado pecaminoso e digno de pena. Não é uma postura pela qual o mundo moderno sente muito simpatia, já que uma de suas principais características e - na minha opinião - sua maior falha é o otimismo.
A despeito de momentos ocasionais de pânico, muitos dos quais ligados a crises nos mercados, guerras ou pandemias, o mundo secular contemporâneo mantém uma devoção irracional à narrativa da melhora, baseada numa fé quase messiânica nos três grandes motores da mudança - ciência, tecnologia e comércio.
Os desenvolvimentos materiais que ocorreram desde meados do século 18 foram tão notáveis e aumentaram de forma tão exponencial nosso conforto, segurança, riqueza e poder que também golpearam mortalmente nossa capacidade de permanecermos pessimistas - e portanto, crucialmente, a nossa habilidade de permanecermos sãos e contentes.
Se tornou impossível fazer uma avaliação balanceada do que a vida é capaz de nos fornecer quando testemunhamos o desvendar do código genético, a invenção do telefone celular, a abertura de supermercados de estilo ocidental em áreas remotas da China ou a inauguração do telescópio Hubble.
No entanto, o que é inegável é que as trajetórias econômicas e científicas da humanidade vêm apontando firmemente para cima há vários séculos, e eu e você não integramos a humanidade. Nenhum de nós indivíduos podemos habitar exclusivamente em meio a desenvolvimentos inovadores na genética ou nas telecomunicações que deram à nossa era seus preconceitos distintos e oscilantes.
Nós podemos extrair alguns benefícios da disponibilidade de banhos quentes ou chips de computadores, mas nossas vidas não estão menos sujeitas a acidentes, ambições frustradas, corações partidos, ciúmes, ansiedade ou morte do que nossos antepassados medievais. Mas ao menos nossos antepassados tinham a vantagem de viver em uma era religiosa na qual nunca cometeram o erro de prometer à sua população que a felicidade poderia fazer sua morada permanente neste planeta.
Os seculares são atualmente na história muito mais otimistas do que os religiosos - uma certa ironia dada a frequência com que os religiosos foram ridicularizados pelos não-religiosos por sua aparente ingenuidade e credulidade. São os seculares cujo anseio pela perfeição cresceu de forma tão intensa que os levou a imaginar que o paraíso pode ser obtido nesta terra em vez de alguns anos mais de crescimento financeiro e pesquisa médica.
Sem tomar conhecimento da contradição, eles podem, num só fôlego, rispidamente descartar a crença nos anjos, enquanto sinceramente confiam que os poderes do FMI, do setor médico, do Vale do Silícioe, da política democrática, em conjunto, irão curar os males da humanidade.
Os benefícios da filosofia do pessimismo devem ser vistos em relação ao amor. O cristianismo e o judaísmo apresentam o casamento não como uma união inspirada e regida pelo entusiasmo subjetivo, mas, em vez disso, e mais modestamente, como um mecanismo através do qual indivíduos podem assumir uma posição adulta na sociedade e, portanto, com a ajuda de um amigo íntimo, se comprometer a nutrir e a educar a próxima geração sob orientação divina.
Essas expectativas limitadas tendem a prevenir a suspeita, tão familiar aos suspeitos do secularismo, de que poderia haver alternativas mais intensas, angélicas ou carregadas em outros lugares. Dentro do ideal da fricção religiosa, disputas e tédio não são sinais de erro, mas da vida estar procedendo de acordo com o plano.
Essas religiões não reconhecem o nosso desejo de adorar apaixonadamente. Eles sabem da nossa necessidade de acreditar nos outros, de venerar e servi-lo se encontrar neles uma perfeição que escapa a nós mesmos.Elas simplesmente insistem que esses objetos de adoração devem sempre ser divinos e não humanos.
Portanto, elas podem nos designar divindades eternamente jovens, atraentes e virtuosas para nos conduzir ao longo da vida enquanto nos relembram diariamente que os seres humanos são criações relativamente monótonas e com falhas dignas de perdão e paciência, um detalhe capaz de iludir nossa atenção no calor de brigas conjugais.
Por que é que você não pode mais ser perfeito? Essa é a opinião incensada pela maioria dos argumentos seculares. Em seu esforço de impedir que nossos sonhos sejam lançados uns contra os outros, as religiões têm o bom senso de nos dar anjos para adorar e amantes para tolerar.
A visão de mundo pessimista não tem de pressupor uma vida desprovida de alegria.Os pessimistas podem ter uma capacidade muito maior de apreciaçãodo que os seus homólogos, pois eles nunca esperam que as coisas acabem bem e assim podem se surpreender com os sucessos modestos que ocasionalmente surgem em seus horizontes escurecidos". (BBC Brasil , XXIX/VIII/2011)