Um poeiraço de entupir os pulmões levitando por sobre a feijoada e pelas beiradas do panelão do frango caipira. Hippies encostados à sombra esperando pacientemente pela mítica Era de Aquarius e por um mundo de Paz & Amor. Enquanto isso, claro, vendem suas pedrinhas de “esmeralda”, suas sementes e seus arames para as cocotas. Um luthier dedilhando sua cítara, meia garrafa de óleo de buriti derramado e um caminhão-cinema no meio da praça. Vagabundos de outros países, velas nos cafés, preços de Paris, bêbados, cannabis, sexo e uma fogueira imensa onde irá acontecer a dança frenética e sensual das mulheres quilombolas.
[...levanta a saia nega!!! Levanta a saia nega!!! Olha a formiga nela!! Olha a formiga nela!! Tralalá, trallalllaaaa...]
Enquanto o rebolado das nádegas, das tetas e dos ombros comia solto.
A uns cem metros dali o barracão onde um homem alienado (uma espécie de Bispo do Rosário, da vila) caminhava em alucinio em seu atelier. As paredes externas da casa decoradas com seus desenhos e pinturas dão uma pista de quanto seus conflitos podem estar relacionados ao corpo. Aliás, existe algum conflito, da ordem que for, que não esteja relacionado com o corpo? Enfiei hipócrita e jovialmente a cabeça para dentro daquele ambiente meio insalubre e cheio de telas tentando, além de ver seu trabalho fazer um contato verbal com aquele homem. Nenhuma chance. Vigiado pela mãe, ignorou-me completamente. Se me dirigiu o olhar foi uma única vez, de sosláio, como se me dissesse, com as palavras de J. Lederer:
“é em vão que procuras o segredo perdido da imensa jovialidade do passado. Teu riso não tem graça, é acanhado, miserável, é um soluço invertido, o resíduo dessecado das lágrimas que não consegues mais derramar...”
Entendi perfeitamente o recado e caí fora. Lá na rua empoeirada e ao sol a criança de uma etnia desconhecida se lambuzava inteira com um sorvete de açai. O idioma, as crenças e as idiossincrasias dessa gente parecem de outro planeta. Falam de São Jorge, da Virgem Maria e do Divino como se os três fossem de uma família de latifundiários que habita o lado de lá das montanhas. Cachoeiras, a solidão do cerrado, a liturgia das vacas no pasto, o Vale da Lua com suas pedras exóticas, com suas imagens marcianas e um gavião com uma lagartixa no bico – manger ou être mangé, telle est la loi de la jungle.
Se a madrugada não serve para outra coisa, pelo menos aqui nos faz ter a ilusão de que a poeira acabou e de que a espécie jaz para sempre. A fogueira já atingiu seu climax, agora são os tições incandescentes que, enquanto se consomem, dão vida e movimento aos paredões e às sombras.
Ezio Flavio Bazzo