Aqueles que foram precocemente idiotizados pelos esportes, pela TV e pela cerveja sabem, e muito bem, o que fazer nos finais de semana. Os outros, ah, esses se lançam em alta velocidade pelas estradas do mundo ou mesmo aqui pelas Chapadas de Goiás em busca de algo que turbine seu cérebro e que apazigue seus delírios. E foi assim que vim parar em Alto Paraíso, no vilarejo de São Jorge, em plena Chapada dos veadeiros (disse veadeiros e não viadeiros), onde, entre outros medievalismos, se encena novamente nesta semana a Festa do Divino. Mas não é só isso: a programação indica que haverá maracatú, carimbó, catira, encontro entre Kaiapós, Krahôs, Kariris, gente dos quilombos, cantores de outros Estados etc.Um poeiraço de entupir os pulmões levitando por sobre a feijoada e pelas beiradas do panelão do frango caipira. Hippies encostados à sombra esperando pacientemente pela mítica Era de Aquarius e por um mundo de Paz & Amor. Enquanto isso, claro, vendem suas pedrinhas de “esmeralda”, suas sementes e seus arames para as cocotas. Um luthier dedilhando sua cítara, meia garrafa de óleo de buriti derramado e um caminhão-cinema no meio da praça. Vagabundos de outros países, velas nos cafés, preços de Paris, bêbados, cannabis, sexo e uma fogueira imensa onde irá acontecer a dança frenética e sensual das mulheres quilombolas.
[...levanta a saia nega!!! Levanta a saia nega!!! Olha a formiga nela!! Olha a formiga nela!! Tralalá, trallalllaaaa...]
Enquanto o rebolado das nádegas, das tetas e dos ombros comia solto.
A uns cem metros dali o barracão onde um homem alienado (uma espécie de Bispo do Rosário, da vila) caminhava em alucinio em seu atelier. As paredes externas da casa decoradas com seus desenhos e pinturas dão uma pista de quanto seus conflitos podem estar relacionados ao corpo. Aliás, existe algum conflito, da ordem que for, que não esteja relacionado com o corpo? Enfiei hipócrita e jovialmente a cabeça para dentro daquele ambiente meio insalubre e cheio de telas tentando, além de ver seu trabalho fazer um contato verbal com aquele homem. Nenhuma chance. Vigiado pela mãe, ignorou-me completamente. Se me dirigiu o olhar foi uma única vez, de sosláio, como se me dissesse, com as palavras de J. Lederer:
“é em vão que procuras o segredo perdido da imensa jovialidade do passado. Teu riso não tem graça, é acanhado, miserável, é um soluço invertido, o resíduo dessecado das lágrimas que não consegues mais derramar...”
Entendi perfeitamente o recado e caí fora. Lá na rua empoeirada e ao sol a criança de uma etnia desconhecida se lambuzava inteira com um sorvete de açai. O idioma, as crenças e as idiossincrasias dessa gente parecem de outro planeta. Falam de São Jorge, da Virgem Maria e do Divino como se os três fossem de uma família de latifundiários que habita o lado de lá das montanhas. Cachoeiras, a solidão do cerrado, a liturgia das vacas no pasto, o Vale da Lua com suas pedras exóticas, com suas imagens marcianas e um gavião com uma lagartixa no bico – manger ou être mangé, telle est la loi de la jungle.
Se a madrugada não serve para outra coisa, pelo menos aqui nos faz ter a ilusão de que a poeira acabou e de que a espécie jaz para sempre. A fogueira já atingiu seu climax, agora são os tições incandescentes que, enquanto se consomem, dão vida e movimento aos paredões e às sombras.
Ezio Flavio Bazzo














