(...) Viajar sozinho é um exercício fascinante de soberania
e de individualismo. Só quando se viaja sozinho por trinta ou quarenta dias –
tempo em que não se tem que conciliar nada com ninguém, nem acordar ou dormir
numa hora determinada, tempo em que se pode ir para o sul ou para o norte
conforme as preferências de nossa intuição, falar ou silenciar, comer disto ou daquilo ou
simplesmente fazer um jejum prolongado etc. – é que se percebe o quanto nossa
cidade de origem nos faz mal e o quanto as palavras, o noticiário, os diálogos e o blábláblá
cordial de todos os meses nos adoecem. Só nesta espécie de retiro profano é
que se percebe os malefícios das trilhas medíocres de nosso dia-a-dia, o envenenamento
que nossas obrigações nos provocam, o empobrecimento e a bovinização que a
mesmice patriótica e sedentária nos brinda... Nada é mais fascinante que acordar
junto aos primeiros raios de sol num país e num hotel que nem se sabe direito o nome, descer as
escadarias, jogar a chave para o porteiro e cair no mundo. Ir para a esquerda
ou para a direita é a mesma coisa. Seguir o fluxo ou ir na contramão, sem
destino, é uma maravilha. Cada prédio, cada árvore, cada praça, cada rua, cada cachorro, cada feira, cada
trem que cruza em alta velocidade levitando por sobre trilhos de ferro
espelhado, é um gozo, uma sensação quase infantil de descoberta e de
curiosidade... Posso subir calmamente até Notre-Dame de la garde para examinar a coleção dos ex-votos ou simplesmente tomar um chá de hortelã com as profissionais da rue Glandeves... Cada pessoa que vem em minha direção é sempre alguém que nunca
se viu antes. Eu a olho e sou olhado por ela. Às vezes é uma beldade, outras
vezes uma monstruosidade! Dá no mesmo. Repito: nunca a vi antes. Até aquele
momento ela não sabia de minha existência. Nos cruzamos. Sinto seu perfume ou
seus maus odores. Dobro a esquina em direção ignorada, ela some pela sinistra
passagem de uma construção. E esta experiência se repete infinitamente.
Fotografo uma janela onde uma trepadeira mediterrânea se infiltrou pelas fendas
da persiana já destroçada pela brisa do mar. Faço o foco. Aproximo ao máximo
aquele retângulo que está sendo congelado no interior de minha máquina.
Surpresa: através da lente percebo uma lagarta grudada a uma folha. Uma pequena
lagarta, quase amarela. Esqueço de clicar. Fico ali, imóvel, acompanhando os
movimentos daquele estranho ser que lembra um tanque de guerra com suas
esquisitas patas. Quando volto à realidade, estou cercado por três ou quatro
senhoras, cada uma com sua sacola de verduras, peixes, flores,.. com um ar de
pré-demencia e que também olham em direção à janela tentando adivinhar o que
realmente registro. Posso ficar ali com elas duas ou três horas, em silencio,
olhando para o nada.., ou então cumprimentá-las em qualquer idioma. O idioma é
o que menos importa. O que vale não é o verbo, mas o gesto que o acompanha. Nos
dispersamos. Elas sobem pela rua Cours
Belsunce enquanto tento localizar o ônibus que me levará até a Église Saint-Eusébie (Paroisse de
Montredon). O sol ricocheteia lá nas muralhas do Forte de São Nicolau e em seguida mergulha nas ondas azuis do mar
onde centenas de barcos, lanchas e veleiros balançam para lá e para cá sem
pressa nenhuma em esquiar sobre os abismos... Na direção de meus olhos,
Mediterrâneo adentro, enxergo a pequena ilha onde está plantado o famoso Castelo de If, aquele onde Dumas
encarcerou o Conde de Monte Cristo. Na página 542, 543 da obra em questão,
chegando em Marselha, Dumas escreve: em
breve Marselha, branca, tépida, viva: Marselha, a irmã mais nova de Tiro e de
Cartago, e que lhe sucedeu no império do Mediterrâneo; Marselha, mais formosa
quanto mais envelhece...”
Como normalmente os turistas chegam e vão embora em no
máximo dois ou três dias, quando se fica um mês, todos os nativos percebem a
nossa presença. É de praxe desconfiar de um forasteiro, ter curiosidade, achar
bizarra sua longa permanência, divagar sobre sua sanidade. Sim, é “normal” a
policia ir ao hotel bisbilhotar nossa ridícula biografia, saber de onde viemos e
para onde vamos... Com a internet e o Google tudo isso ficou bem mais fácil... (a CIA que o diga!). Se eles
nos vêem todos os dias em nosso invejável vagabundeio, nós também os vemos lá
em sua melancólica burocracia, em seus lucrativos negócios, em seus
compromissos nacionais, em suas angústias... O senhor da banca de jornais; a família que
tem uma loja de Savon de Provence; as
funcionarias da agência de turismo; o violinista cigano; a moça do couscous
berbere; a croata da padaria; os executivos da Bolsa; o senhor do chá, ao lado da igreja; o mendigo do
cachorro marrom; o vendedor de bilhetes para o carrossel italiano na rua
Canabiére; os cinco negros que, todos os dias, exatamente as 18:00 horas, se
encontram em frente ao hotel Lutétia, depositam um tabuleiro sobre a mureta do
jardim e ficam ali jogando um jogo primitivo e estranho, até que o sol dure... (...)
Gostei da nova versão exótica da imagem de "nossa senhora de Aparecida"...
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