Durante a sessão de ontem no STF
onde estão sendo julgados os atores do mensalão ouve um genuíno momento
de transcendência quando uma das excelências, pouco antes de lançar seu
voto condenatório sobre todos os réus, mencionou com certo asco ao Dr. Pangloss, personagem doentiamente
otimista de uma obra de Voltaire. Quem é que poderia imaginar que iríamos
ouvir naquela casa e da boca de uma ministra,
uma menção ao velho e maldito Voltaire? Daquele que passou boa parte de sua vida fugindo da Lei e que, sem pudor, apregoava: [O
público é uma besta feroz. Deve-se enjaulá-lo ou fugir dele]?
Apenas para aguçar a curiosidade dos
leitores, reproduzo abaixo um dos pequenos capítulos da obra Cândido ou o
otimismo desse pensador genial...
CAPÍTULO IV
(De como Cândido encontrou o seu
antigo mestre de filosofia, o doutor Pangloss, e do que sucedeu)
Cândido,
mais tocado ainda de compaixão que de horror, deu àquele espantoso mendigo os
dois florins que recebera do bom anabatista. O fantasma olha-o fixamente,
derrama lágrimas, e salta-lhe ao pescoço. Cândido, horrorizado, recua.
— Ai! –
diz o miserável ao outro miserável, – então não reconheces mais o teu caro
Pangloss?
— Que
ouço? Tu, o meu querido mestre! Tu, nesse horrendo estado! Que desgraça te
aconteceu? Por que não estás ainda no mais lindo dos castelos? Que foi feito da
senhorita Cunegundes, a pérola das donzelas, a obra-prima da natureza?
— Não
posso mais comigo – gemeu Pangloss.
Cândido o
levou para o estábulo do anabatista, onde lhe deu a comer um pouco de pão. E,
depois que Pangloss se refez:
— Então –
disse ele, – e Cunegundes?
— Morreu.
A esta
palavra, Cândido perdeu os sentidos; o amigo o fez voltar a si com um pouco de
mau vinagre que havia por acaso no estábulo. Cândido reabre os olhos:
—
Cunegundes morta! Oh! onde é que estás, ó melhor dos mundos? Mas de que morreu?
Não seria por me ter visto expulsar a pontapés do castelo do senhor seu pai?
— Não –
disse Pangloss. – Ela foi estripada por soldados búlgaros, depois de ter sido
violada o mais possível; rebentaram a cabeça do senhor barão, que queria
defendê-la; a senhora baronesa foi cortada em pedaços; o meu pobre pupilo,
tratado precisamente como a irmã e quanto ao castelo, não ficou pedra sobre
pedra, nem uma granja, nem um carneiro, nem um pato, nem uma árvore; mas fomos
bem vingados, pois os abaros fizeram o mesmo em uma baronia vizinha que
pertencia a um senhor búlgaro.
Ao ouvir
tais coisas, Cândido desmaiou outra vez; mas, voltando a si, e tendo dito tudo
o que devia dizer, Indagou da causa e do efeito, e da razão suficiente que
pusera Pangloss em tão lastimável estado.
— Ai! –
suspirou o outro. – Foi o amor; -, amor, o consolador do gênero humano, o
conservador do universo, a alma de todos os seres sensíveis, o terno amor.
— Ai! –
disse Cândido. – Eu o conheci, esse amor, esse soberano dos corações, essa alma
da nossa alma: nunca me rendeu mais que um beijo e vinte pontapés por detrás.
Como pôde essa bela causa produzir, na tua pessoa, tão abominável efeito?
Pangloss
respondeu nos seguintes termos:
— Ó meu
caro Cândido! Bem conheceste Paquette, a linda criadinha da nossa augusta
baronesa; gozei nos seus braços as delícias do paraíso, que produziram em mim
estes tormentos do inferno de que me vês devorado; ela estava infetada e talvez
tenha morrido disso. Paquette ganhara esse presente de um franciscano muito
erudito, que havia remontado à fonte, pois o adquirira de uma velha condessa,
que o recebera de um capitão de cavalaria, que o devia a uma marquesa, que a
tinha de um pajem, que o tomara de um jesuíta que, quando noviço, o herdara em
linha reta de um dos companheiros de Cristóvão Colombo. Quanto a mim, não o
passarei a ninguém, pois estou para morrer. Ó Pangloss! – exclamou Cândido. –
Que, estranha genealogia! Não seria o diabo que foi o tronco?
— Qual! –
replicou o grande homem. – Era uma coisa indispensável no melhor dos mundos, um
ingrediente necessário: pois, se Colombo não tivesse apanhado em uma ilha da
América essa doença que envenena a fonte da geração, e que é evidentemente o
oposto da grande finalidade da natureza, nós não teríamos nem chocolate nem
cochonilha; cumpre observar que até hoje, no nosso continente, esta doença nos
é peculiar, como a controvérsia, os turcos, os hindus, os pernas, os chins, os
siameses, os nipônicos, ainda não a conhecem; mas há uma razão suficiente para
que a conheçam, por sua vez, em alguns séculos. Enquanto isto, vai ela fazendo
um maravilhoso progresso entre nós, e principalmente nesses grandes exércitos
compostos de honrados mercenários, tão bem educados, que decidem do destino das
nações; pode-se assegurar que, quando trinta mil homens combatem em formação
contra tropas iguais em número, há cerca de vinte mil contaminados em cada
campo.
—
Admirável disse Cândido, mas é preciso que te cures.
— Mas
como? Não tenho um vintém, meu amigo; e, em toda a extensão deste globo, não me
pode nem fazer uma sangria, nem tomar uma lavagem, sem pagar, ou sem que haja
alguém que pague por nós.
Estas
últimas palavras decidiram Cândido; foi lançar-se aos pés do caridoso
anabatista Jaques e fez-lhe uma pintura tão comovente do estado a que se achava
reduzido o seu amigo, que o nosso homem não hesitou em recolher o doutor
Pangloss; mandou-o tratar à sua custa. Pangloss, com a cura, só perdeu um olho
e uma orelha. Como tinha boa letra e sabia aritmética, o anabatista empregou-o
como guarda-livros. Dois meses depois, sendo obrigado a ir a Lisboa a negócios,
embarcou consigo os dois filósofos. Pangloss explicou-lhe como tudo marchava o
melhor possível. Jaques não era dessa opinião.
— Está
visto – dizia ele – que os homens corromperam um pouco a natureza, pois não
nasceram lobos, e tornaram-se lobos. Deus não lhes deu nem canhões nem
baionetas, e eles fabricaram baionetas e canhões para se aniquilarem. Eu
poderia ainda levar em conta as falências, e a justiça, que se apodera dos bens
dos falidos para ludibriar os credores.
— Tudo
isso era indispensável – replicava o doutor caolho, – e os males particulares
constituem o bem geral, de sorte que, quanto mais males particulares houver,
tanto melhor irão as coisas.
Enquanto
assim arrazoava, o céu escureceu, os ventos sopraram dos quatro cantos do
mundo, e o navio foi assaltado pela mais tremenda tempestade, à vista do porto
de Lisboa.
Houve
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