Uma imitação bufa dos teatros gregos e dos coliseus romanos?
Os vendedores de bilhetes, os fiscais, os administradores, os chefões dessa carnificina têm todos o perfil clássico do submundo. Duvido que tenham lido um livro na vida e que algum deles tenha perdido uma noite de sono tentando abrandar algum problema da cultura. Analfabetões como ocorre nos estádios de futebol ou como nos guetos de pugilistas. Que alguns intelectuais tenham feito elegias a essa barbárie e a essa ralé não significa nada. Em seu Colóquio con Garcia Lorca, tratando das touradas e do horror que elas normalmente causam aos estrangeiros, até Papini chegou a colocar estas palavras na boca do poeta andaluz:
“Não todos os estrangeiros são tão imbecis, mas a maioria dos que assistem o espetáculo de nossas corridas sentem simultaneamente atração e asco. Isto se deve ao fato de que normalmente são viajantes filisteus e que, mesmo quando se trata de pessoas cultas, carecem do verdadeiro espírito poético. Estou escrevendo um poema sobre Ignacio Sánches Mejías, um de nossos toureiros mais famosos, e espero fazer essa gente comprender a beleza heróica, pagã, popular e mística que existe na luta entre o homem e o touro”.
Dizem-me que no subsolo, há um pequeno museu, com um desenho de Cocteau, a Capa rosa de Picasso e uma reprodução do touro que, em 1947 matou o famoso Manolete. Os turistas vão chegando, uns eufóricos, outros visivelmente intimidados, dando ao lugar o alarido típico das feiras e das zonas. Como os ecologistas lançaram sobre os apreciadores desse espetáculo e dessa epifania bovina os adjetivos mais grotescos e os palavrões mais escatológicos, muitos deles se disfarçam e quando voltam para seus países mantêm em segredo essa «aventura», como se, de alguma maneira, se sentissem até responsáveis pelo assassinato dos touros. Domingo. Dezenove horas em ponto. As arquibancadas estão lotadas. Começam os rituais. O presidente dá o sinal de entrada. Vai iniciar o Primeiro Terço. Bandas, gritos, correrias, portões que se fecham. A troupe de matadores já se exibe na arena, um «não-sei-quê» de afeminado, com calças ridículas e apertadas que lhes salientam as nádegas e os genitais. Ainda não vi o touro, mas já torço por ele. Nas arquibancadas os vendedores de bebidas, chapéus, fotos de toureiros e de postais se apressam. Cada idiota puxa sua câmera fotográfica, seu binóculo, sua filmadora. É necessário registrar a espada enterrada no corpo do touro ou, por que não, os chifres do animal estraçalhando o corpo do toureiro. Sinto que desejaria imensamente assistir a uma tormenta de chifradas, de coices e de imprevistos. Penso involuntariamente em Apis, o touro sagrado dos egípcios. Quando um touro morria e era «entronizado» um novo, era dado às mulheres apenas um período de quarenta dias para visitá-lo. Durante essas visitas elas levantavam as roupas e lhe mostravam a vulva. Penso no touro de Minos que, por uma artimanha dos deuses, teria enrabado Pasifae. Penso nos touros de minha infância, que trepavam com sete ou oito vacas no mesmo dia; nos testículos desse animal que a peãozada toda comia achando que havia neles propriedades afrodisíacas. Enfim, parece impossível dissociar historicamente esse animal da sensualidade e da volúpia. Quando teriam iniciado as touradas? Os mouros as teriam trazido para a Espanha e esta as exportado para o México, Colômbia e etc? Não tenho a mínima idéia. Só sei que esta idiotice começou aqui, lá pelo século XIII, com as corridas de rua. Naquela época, já que ninguém escapa ao fatalismo de sua idiotice, até os nobres e os reis faziam parte do espetáculo. Depois foi sendo deixado novamente para a plebe. Entre todas as idiotices que os portugueses levaram para o Brasil estava também esta. Lá pelo séc. XVII, durante as cavalhadas de Salvador, era comum ver touradas que duravam até três dias. Normalmente o sujeito toureava de cima do cavalo e o touro tinha a ponta dos chifres aparada. “Já na pré-história - diz Lormier - o touro era venerado por sua potência e sua força, era respeitado como o símbolo solar da prosperidade e da fertilidade. (...) Nas civilizações da antiguidade, diversos hinos religiosos mencionam o Deus-Touro. No Egito antigo, 3500 anos a.C. é generalizado o culto do rei-Touro. Os hititas, 2000 anos a.C fazem do touro o primeiro de seus deuses (...) O touro é também um signo solar na astrologia e tem um significado importante no cristianismo.”Os dois mal encarados que me venderam os bilhetes na rua fumavam como loucos e pareciam ciganos. Os ciganos que Lorca, num surto lirico tanto elogiou em seu Romancero gitano.“El gitano es lo más elevado, lo más profundo, más aristocrático de mi país, lo más representativo de su modo y el que guarda el ascua, la sangre y el alfabeto de la verdad andaluza y universal..”.Verdade ou apenas a velha, frívola e conhecida tapeação dos intelectuais para com os fodidos e condenados da terra? Pelo menos os espanhóis de hoje, esse povo que até bem pouco tempo jogava gatos amarrados nas fogueiras de São João, não pensam e não sentem nada disso a respeito dos ciganos. Pelo contrário, se pudessem, os mandariam de volta para o país idílico e imaginário de onde vieram ou instalariam uma nova Treblinka para eles em algum rincão espanhol.
O portão é aberto e um touro mais preto que o azeviche entra em fúria, olhando para todos os lados, dando pequenos saltos como se fosse levantar vôo. Elege uma das bandeiras rosas e dispara contra ela. De seu nariz já escorre um líquido fumegante. Defeca, como se estivesse literalmente cagando para o mundo. Os toureiros se protegem atrás de paredes de cimento e de superstições... Ele ameaça enfiar os chifres no concreto, mas recua... Não é bobo. Os toureiros se exibem. Passos ensaiados para cá, passos ensaiados para lá. Parecem galos de briga depenados. O touro fecha os olhos e se lança sobre a capa vermelha. Não acha corpo algum. Derrapa na areia. Defeca. Dá uma rápida olhada para a platéia. Gritos. Silêncios. Cheiro de merda e de suor. O rabo para cima. Oitocentos quilos de ódio e de fel. A língua para fora. De sua pica escorre um jato de sêmen. Admiro-o por não ter vergonha de suas excrescências… Alguém das arquibancadas pede que o toureiro lhe corte as orelhas. La oreja... la oreja... la oreja.
A linguagem das touradas é quase tão hermética e tão cheia de signos, significados e significantes quanto à dos lacanianos. Para decifrar o artigo intitulado Oreja de Consolación que saiu no jornal do dia seguinte, sobre o desempenho dos toureiros, dependi da boa vontade da camareira do hotel. «rodilla en terra»; «incorrección del site»; «pasaportar al novillo devuelto»; «danzó por delante en en amago de cite al natural», etc, etc.
Nova investida. Os chifres passam a um milímetro das tripas do toureiro. Gritos. Assobios. Aplausos. Uma pequena interrupção para que entrem os dois cavalos, protegidos nas laterais por uma couraça e com vendas nos olhos. O touro se lança sobre um deles, enfia-lhe as duas aspas com tanta fúria que o levanta da areia. O cavaleiro, por sua vez, em seu exercício de crueldade, mete-lhe o arpão no pescoço e o cavalo permanece indiferente, como se não tivesse a mais mínima idéia daquilo que estava acontecendo. Torço cada vez mais para meu herói negro e solitário, mas percebo que já está entregue. Num novo assalto contra o cavalo caí de joelhos... Gritos, xingamentos... É evidente que para o touro esta é uma luta perdida. A organização do espetáculo não permitiria qualquer possibilidade de vitória para ele. Desfilar pela arena com o toureiro espetado nos chifres se esvaindo em sangue seria o fim. Soçobrariam os negócios, o sindicato dos toureiros e o pessoal dos Direitos Humanos iriam a ONU pedir providências. As poucas vezes que houve uma chifrada fatal foi mais por negligência da equipe do que por bravura do touro. Goya desenhou exaustivamente essa barbárie e Lorca a cantou em poemas e em prosa. Picasso e outros espanhóis, apesar do folclore cult que pesa sobre eles, não passaram imunes a esse costume sanguinolento. Rafael Guerra, conhecido por «Guerrita» organizou em 1896 uma espécie de tratado, em 5 vol. sobre a tauromaquia. E um tal de Pascual Millán, em 1888 escreveu em 258 páginas Escuela de tauromaquia de Sevilla y el toreo moderno, o que significa, em última instância, que essa loucura vem de longe.
O homem obeso, sentado ao meu lado, faz um esforço enorme para ver as horas em seu relógio de bolso.
-Já se pasaron nueve minutos! Resmunga para si mesmo. E quando percebe que estou olhando para seu relógio acrescenta: un regalo de mi mujer. Disfarço o riso ao lembrar da frase de um gurú indiano que previnia:
“nunca presenteie alguém com um relógio de bolso, porque isto simplesmente significa que você tem como certo que esse homem está acabado. O relógio é seu último presente e lhe servirá para saber quantas horas faltam para o sol se pôr...”
Acredito que já se foram outros nove minutos. Um dos matadores lhe crava certeiramente duas «puyas», de onde, como de um vulcão, jorram dois jatos de sangue. Psicologicamente já está derrotado e a platéia pede agora que o matador cumpra seu papel metafísico. Outros dois dardos. Outros dois jatos de sangue. Um mugido que causa estremecimento na platéia. Os fotógrafos preparam as câmeras, as mulheres tapam os olhos, o toureiro coloca em cena os movimentos ensaiados por mais de mil vezes diante dos espelhos. Narcisista e vaidoso de merda! Prepara a espada. Para mexer com a histeria da platéia, dá as costas ao touro que treme estático. Não entendo por que não o ataca agora. Tem dois chifres mais eficientes que qualquer espada. Poderia acertar-lhe os rins, a coluna, os pulmões, as costelas e acabar de maneira trágica com este espetáculo. Mas não atua. Decepciona-me. Depois de tantos anos, talvez já haja uma submissão genética nesses animais, uma ética e, por que não, até mesmo um forte instinto de morte. (No sentido freudiano, de ser atraído pelo próprio fim, pela desconstrução de si mesmo, uma espécie de fascínio diante da possibilidade de «deixar de ser», de ver cada osso, cada órgão e cada célula desintegrar-se no nada, quase uma vingança contra o porvir, contra todas as esperanças e contra a vida.)
“Uma hora após a morte – escrevia o narigudo Bergerac, em La mort d’Agrippine -, nossa alma (a alma do touro) desfeita será o que foi uma hora antes da vida...”
A multidão suspira. Aquele homenzinho estúpido se coloca agora diante do animal com a espada na posição do ataque. O touro parece hipnotizado e disposto só a seguir às orientações do amo. Este lhe diz alguma coisa, obriga-o a atacá-lo pela última vez... O touro obedece e recebe no corpo exausto a estocada final. Um palmo de aço enfiado em seu dorso. Urra, corcoveia, defeca, olha para a platéia perde visivelmente a moral, toma consciência de que aquela era realmente sua última tarde de maio. Palmas, assovios, gozos secretos na platéia. Os sádicos se agitam, tagarelam, parecem exorcizar naquele ato os próprios crimes e as próprias culpas. Aquele corpo, uns dez quilos a menos, desaba. O toureiro levanta os braços, dá uma corridinha afeminada ao redor da arena, se exibe para a platéia. As mulheres atiram-lhe chapéus, «pañuelos blancos», flores, camisas e outros objetos que ele recolhe, dá um beijo e os lança de volta, ao léu. Esse frenesi feminino não parece ser para o «macho» como todo mundo sempre pensou, mas pelo que a platéia identifica que há de feminino e de cruel nele. Um açougueiro se aproxima do touro agonizante e lhe enfia várias vezes uma faca na nuca. É a apoteose, o consummatum est, «el momento profundo, sublime, y hasta diré casi sobrehumano, del sacrificio taurino». Em outras palavras: o momento de máxima crueldade.
"El hombre - segue Papini - debe matar los elementos taurinos que hay en él: la adoración de la fuerza muscular agresiva y de la fuerza erótica, igualmente agresiva".
A fanfarra reinicia sua marcha wagneriana, as arquibancadas se agitam e comemoram «la victoria de la virtud humana sobre el instinto bestial», enquanto entram na arena as três juntas de mulas cuja função é arrastar o cadáver pela porta dos fundos. E a mesma história se repete seis vezes. Sempre com touros andaluzes, pretos e da mesma raça transgênica, criados especificamente para esse fim. Deixei as arquibancadas com uma indignação contida e cantarolando a música (La corrida) de Francis Cabrel sobre a tremenda idiotice dessa exibição criminosa:
“... Si, si hombre, hombre / baila /”. Hay que bailar de nuevo / y mataremos otros / otras vidas, otros toros / Venga, venga a bailar...”
http://www.youtube.com/watch?v=SjgrOnfTrfs&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=SjgrOnfTrfs&feature=related
Ezio Flavio Bazzo