Enquanto o Editor rabisca a nova capa, experimenta uma letra maior, modifica as cores, idealiza um lançamento especial só para mendigos, releio pela última vez a “Recapitulação”, na página 195, em busca de algum erro intolerável e/ou imperdoável.
RECAPITULAÇÃO
"Com aquilo que lhe serve para mijar os homens criam seus semelhantes."
Heine
Apesar da demagogia político social e da caridade vigente, da década de oitenta para cá, além de uma disneylandização do mundo, não aconteceu praticamente nada de novo no universo da mendicância e da vadiagem.Os discípulos da frugalidade continuam por aí, do Butão ao Chile, com suas lamparinas sob as árvores, com suas tralhas junto aos muros dos templos ou em plena alucinação nos semáforos, na mais autentica danação, muito além do paraíso e do inferno, cada dia com mais consciência de que o inimigo principal sempre foi e é o nosso imaginário.
Os mais velhos parece até que ainda estão vivendo a ressaca de Woodstock, como se tivessem tomado um ácido e nunca mais se recuperado. Os cabelos brancos, a barba chegando aos joelhos, um bastão, as feições cada vez mais andrógenas, esfomeados, e a senilidade comendo solta. Claro que a grande maioria enlouqueceu, foi parar num abrigo de dementes ou bateu as botas e foi enterrada nos cemitérios da periferia. Um punhado de terra para colocar um ponto final num punhado de misérias e de desgraças.
Nesse ínterim, derrubaram o muro de Berlim a marretadas, o capitalismo se alastrou e sufocou todas as ideologias, jogaram os “esquerdistas” numa latrina e um executivo delirante chegou até a declarar o fim da história. Os banqueiros assumiram descaradamente o comando do mundo e, juntos aos proxenetas das repúblicas, doaram celulares, computadores, carros, cartões de crédito, “cestas básicas” e outras porcarias a cada idiota do planeta, para acalmá-los.
Indiferentes e à margem de tudo, sem grandes inquietudes, os mendigos seguiram, em sua epopéia ortodoxa, ocupando os mesmos lugares de outrora, à margem não apenas dos banquetes, mas também das mentalidades da época. As praças, as igrejas, os viadutos, os portos, as casas abandonadas, as tocas de alguma ruína, os metrôs, as paradas de ônibus, os cemitérios, os circuitos turísticos e os lixões do planeta os acolhem diariamente. Aliás, quem é que ainda não viu as missas negras executadas por eles lá no meio dos lixões?
De vez em quando são culpabilizados por alguma desgraça social, por um estupro, uma psicopatia, um incêndio(1) . Sofrem calados o absurdo da existência, mas vingam-se sobre si mesmos deixando apodrecer solenemente o corpo, único capital.
Um promotor mais idealista e mais burguês querendo fazer média com os seus pares insinua que vai exterminar com essas trupes de pedintes, já que elas depõem contra a dignidade e que são a lepra da modernidade. Mas depois se acalma. Corrige o discurso e todo mundo é deixado em paz por mais uma ou duas décadas.
No Iraque, no auge da última guerra, os mendigos foram retirados das ruas pelos exércitos, com a justificativa de que estavam sendo usados para atentados suicidas. Cinco quilos de dinamite amarrados à cintura de um indigente, um endereço, a garantia de que minutos depois estaria no paraíso e a explosão. Na Índia tudo relacionado a eles fica cada dia mais insólito(2) . Os que ficam diariamente na Praça da Sé, em São Paulo, também foram recolhidos com a recente visita do papa Ratzinger. Ali também disseram que foi por medida de segurança, mas é bem provável que tenha sido por vergonha(3) . Aconteceu a mesma coisa na cidade de Marrakesh, às vésperas de um encontro internacional, só que lá, além dos mendigos, recolheram também os batedores de carteira, que não são poucos. Muitos administradores de cidades brasileiras são acusados de mandar clandestinamente seus mendigos para outras, como fazem comumente com cães. A população de indigentes em Recife, Salvador, Curitiba, São Paulo, Brasília, etc, triplicou. A Central do Brasil no Rio parece uma das Praças dos Milagres do século XV. Mulheres, crianças, velhos, sujeitos de todas as idades, cores e peso. Muitos rancorosos e violentos que mijam por todos os lados e que estão literalmente “cagando” para as idéias de estigma e de contravenção. Se a burguesia encolerizada grita-lhes: dane-se escória miserável!, eles lhe retrucam: foda-se elite de merda! O terrorismo dos padres e dos pastores com a ameaça do inferno não os abala nem um pouco. Ignoram o Velho Testamento, bem como a Divina Comédia e o Apocalipse. Só são fundamentalistas mesmo em sua miséria.
É verdade que alguns, numa tentativa desesperada chegam até a abrir minúsculos negócios, mas logo vão à falência. Outros trabalham para os comandos mafiosos, outros entregam trouxinhas de drogas, os mais delicados caem no boiolismo e servem de quatro na marra a seus iguais. Outros estão sempre fingindo ler um jornal ou com um livro aberto diante dos olhos(4) . Chegaram-me notícias de que em Londres há vários que empunham diariamente seus violinos pelos becos. Outros são alcagüetes da polícia e vivem de seus ardis. Uma fauna indescritível. Vi um deles sentado solenemente diante da BOVESPA, com sua estética macabra, como se esperasse que alguns centavos saíssem voando pelas janelas daquele ninho de ladrões e de bandidos. Outro admirava de longe um casamento, a noiva toda de branco, o noivo como um pingüim, as histerias de praxe dos respectivos familiares e toda a idiotice que circunscreve esse costume. Alguns já foram vistos até brincando com notebooks ou com laptops sob os viadutos e sobre suas carroças de papel. Nos países outrora comunistas, tanto eles, como as putas e os pregadores estiveram interditados por longo tempo. Mas foi só a comédia acabar para que as ruas se enchessem novamente de prostituição, de pregarias e de esmoleres. São sempre os mesmos. Irrecuperáveis e imprestáveis para o establishment desse imenso Guantánamo que é o mundo. Não votam, não abandonam o cigarro, não têm poupança, não escovam os dentes, não dirigem, não produzem e nem consomem. A cachaça e a solidão os fazem cada vez mais prolixos. Continuam odiados por todo mundo. Se cada sujeito da elite tem seu anjo da guarda, cada um dos mendigos tem seu demônio.
Apesar do blábláblá dos Direitos Humanos, do papo furado a respeito da Cidadania, das balelas Humanistas, da verborréia diária dos políticos e das sopas dos animistas, as classes sociais privilegiadas continuam olhando-os do alto de suas coberturas ou por detrás das cercas de suas mansões com um misto de pena, raiva e repugnância. Seguem alienadas e torpes, cada vez mais fúteis, mais gordinhas e mais pelegas, entretendo-se com seus brinquedos eletrônicos e com suas porcas presunções, sempre resmungando do umbral de suas janelas: “Descendez, descendez, lamentables victimes, / Descendez le chemin de l’enfer éternel”.
Brasília, 16 de outubro de 2009
Ezio Flavio Bazzo
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1. A semana passada foram acusados em Brasília de tocarem fogo na igrejinha da 307/308 sul, uma relíquia para os beatos e burocratas da quadra, uma das poucas que além dos mosaicos do Athos Bulcão, já teve em seu interior uma pintura do Alfredo Volpi. Passei por lá logo depois dos bombeiros, e os mosaicos ainda estavam chamuscados. Sete ou oito “filhos de Caim” se esparramavam arrogantes pelas escadarias e pelos arredores como cães em volta de uma cadela em cio. Sabem esperar, a experiência lhes ensinou que sempre haverá algum tipo de gratificação ou de luxúria, mesmo no interior de uma calúnia. Uma lambida, uma dentada, mas depois o completo ato copulatório. Uma moradora das mais tradicionais veio confidenciar-me que aquela gente, além de não crer em Deus, cagava por todos os lados. Que aqueles miseráveis se beijam depois de embriagados, que usam facas por debaixo dos farrapos e que até fazem sexo junto às paredes daquele patrimônio da humanidade, um sacrilégio não apenas contra Juscelino, mas contra Nossa Senhora de Fátima, a padroeira da igreja.
1. A semana passada foram acusados em Brasília de tocarem fogo na igrejinha da 307/308 sul, uma relíquia para os beatos e burocratas da quadra, uma das poucas que além dos mosaicos do Athos Bulcão, já teve em seu interior uma pintura do Alfredo Volpi. Passei por lá logo depois dos bombeiros, e os mosaicos ainda estavam chamuscados. Sete ou oito “filhos de Caim” se esparramavam arrogantes pelas escadarias e pelos arredores como cães em volta de uma cadela em cio. Sabem esperar, a experiência lhes ensinou que sempre haverá algum tipo de gratificação ou de luxúria, mesmo no interior de uma calúnia. Uma lambida, uma dentada, mas depois o completo ato copulatório. Uma moradora das mais tradicionais veio confidenciar-me que aquela gente, além de não crer em Deus, cagava por todos os lados. Que aqueles miseráveis se beijam depois de embriagados, que usam facas por debaixo dos farrapos e que até fazem sexo junto às paredes daquele patrimônio da humanidade, um sacrilégio não apenas contra Juscelino, mas contra Nossa Senhora de Fátima, a padroeira da igreja.
2. Recentemente, uns hindus fanáticos deram uma surra num pregador cristão que tentava converter um grupo de mendigos. Nesse mesmo país das crendices, durante os eclipses, muita gente sai de casa em busca de mendigos para oferecer-lhes alguma coisa, umas rúpias, um pão ou até mesmo uma ducha. Sabe-se que por lá não são poucos os que dão um jeito de amputar-se um braço ou uma perna para terem mais sucesso como mendigos.
3. Confúcio já lembrava ao pessoal de sua época que: “se um país é regido pelos princípios da razão, a pobreza e a miséria são objetos de vergonha. E que se um país não é regido pelos princípios da razão, as riquezas e as honras são objetos de vergonha”.
4. Já relatei em algum lugar, que em Tanger, no Marrocos, encontrei um mendigo lendo o Corão junto ao mar. De vez em quando tirava os olhos da Quinta Surata para lançá-los misticamente por sobre as ondas na direção do território espanhol. Naquela mesma cidade, numa feira de legumes, outro mendigo lia um dos mais importantes escritores do país, que agora não lembro o nome. Encontrei mendigos poetas e poetas mendigos por todos os lados do planeta. Até mendigos que já haviam sido livreiros ou bibliotecários e que levavam no meio de suas porcarias um pedaço de lápis e uma caderneta para anotar suas inspirações. Parece que não gostam de ler lamentos e maldições de outros desgraçados como eles, preferem os poetas românticos, cultos e ricos, toleram os acadêmicos, mas odeiam poetas diplomatas e funcionários públicos. Para eles a diplomacia e o serviço público são desprezíveis e os poetas que surgem naquele meio (com tanta freqüência) são sempre uns farsantes. Acredito que se entediariam lendo Fome – de Knut Hansum – ou as histórias de vagabundos de Jack London.
O título deste livro é excelente! O assunto, melhor ainda. Fico olhando para os mendigos e me perguntando o que leva um ser humano a viver assim? Respondo: a nossa indiferença. Mas não é só isto, ou seria? Mas deixar de ser indiferente, seria um grande avanço, e a maioria perguntaria: e como é não ser indiferente? Como direcionar o olhar a aquilo que mais importa? Como deseducar este homem que está formatado para o egoísmo e a ganância? Como curar esta sociedade doente?
ResponderExcluirSeu livro vai ajudar, tenho certeza.
Adorei o texto, muitos parabens pela coragem. É extremamente verdadeiro. E as perguntas da Maria Helena tambem sao muito pertinentes. Aqui no centro de BH as ruas estao cheias de mendigos; para alguns eu pago um lanche aqui, um marmitex ali, um suco acolá... nao ha nenhuma desculpa aceitavel para uma sociedade que mantem miseria. Qualquer catastrofe como castigo ou consequencia seria muito pouco perto do que a nossa sociedade de nao-miseraveis merece. Existe a cura mas esta sociedade nao quer se curar, em definitivo. Sao poucos os que realmente buscam essa cura, e esses poucos precisam se juntar em suas acoes e deixar de lado a ilusao de que o restante da humanidade ira segui-los um dia, porque isso seria um luxo, seria um lucro muito alto, uma possibilidade distante. O ser humano eh uma besta mesmo.
ResponderExcluirEstou lendo este livro. Tem muita informação. É uma leitura ótima.
ResponderExcluirQuase não dá para acreditar o que as pessoas pensavam e seguem pensando sobre os mendigos...
abraços,
Escritor, queremos lhe entrevistar... apareça na feira do livro de Porto Alegre!