Esta pichação reapareceu na parada de ônibus da 209 norte, no dia seguinte à aprovação do acordo entre o Estado brasileiro e o VaticanoEzio Flavio Bazzo
Esta pichação reapareceu na parada de ônibus da 209 norte, no dia seguinte à aprovação do acordo entre o Estado brasileiro e o Vaticano
Mesmo com o risco de que venha a reduzir a população do planeta pela metade, a gripe suína vem desencadeando pelo menos um benefício ao processo civilizatório: o costume de se lavar as mãos. A certeza de que nos restaurantes, nos bares, nos hospitais, nas bibliotecas haverá, daqui para diante, um fio de água e uma gota de sabão para essa prática será um legado imenso para aqueles que sobreviverem.
Você que está preocupado (a) com seu desempenho genital, você que tem dado apenas uma e com muito esforço a cada fim de mês, ou apenas uma a cada início de primavera, relaxe. Não é tão grave. Duas notícias recentes podem amenizar teu sentimento de ser o único sujeito do planeta que caminha a passos rápidos para a morte do desejo ou para a indiferença (leia-se impotência ou frigidez). Primeira: Vera Fischer (que continua sendo símbolo sexual e inspiradora do onanismo de muita gente) acaba de declarar em entrevista pública que está há dois anos sem entregar-se aos desvarios da luxúria. Segunda: Uma pesquisa feita na Grã Bretanha aponta que 73% de dois mil entrevistados confessam não terem energia para o sexo, e que isto se deve, segundo os próprios, à falta de condicionamento físico. Curiosamente, desses mesmos entrevistados, 36% afirmam que não correriam para pegar um ônibus e 59% que se o controle remoto da TV estivesse quebrado, prefeririam assistir um programa que não gostam para não terem que tirar o rabo do sofá e irem trocar de canal. Que tal? Mas não foram eles que piratearam soberbamente os mares durante décadas? Que pisotearam a Índia durante séculos? Que colocaram bravamente os argentinos de joelhos ali nas Malvinas? De onde teria surgido toda essa preguiça? Quanto ao sexo, talvez, Wilhelm Reich e sua Função do Orgasmo estejam definitivamente superados e o rabugento Salvador Dali estivesse certo quando insistia que o orgasmo é só um pretexto, que o que importa mesmo é o gozo das imagens.
Quando chega a quinta-feira e os políticos voam para suas “bases” Brasília não fica jogada às traças e às moscas, como se pensa. Entram em cena outros sujeitos que, como aqueles, ludibriam, locupletam, enganam e distraem as massas. Há bebedeiras, fumaceira, shows, comilanças, rezas e putarias para todos os gostos. Neste sábado – por exemplo -, montaram na Esplanada dos Ministérios, bem em frente ao Museu da República, uma tenda da Igreja Mundial do Poder de Deus. Quem não foi lá para ouvir o pastor e ver a multidão perdeu a chance de vivenciar as Praças dos Milagres da época tenebrosa de Brueghel. A fala do pastor foi perfeita. Com um fundo musical melancólico e um texto melhor que o de Cioran e que o de Schopenhauer juntos, fez aquele rebanho de humildes, desgraçados e de desconfiados, com os braços levantados e os olhos fechados vislumbrarem uma centelha de esperança. Não no hoje e no agora, lógico, mas no amanhã e lá no Reino dos Céus. Fez literalmente cegos enxergarem, paralíticos saltarem de suas cadeiras, pessoas com tumores curarem-se na hora, bêbados amaldiçoarem a cachaça, surdos ouvirem etc. Desafiou o demônio por várias vezes (ouvi o Demo rugindo no interior de alguns devotos), falou do deserto espiritual (o qual todos haveremos de cruzar um dia) e implorou em lágrimas, ao Senhor para que curasse os diabéticos, os cancerosos, os deprimidos, os viciados, os despossuídos, os loucos e demais infelizes que ali estavam naquela manhã estupenda e ensolarada de sábado. Foi um show para divindade nenhuma colocar defeito. Entrementes, no Museu da República, um pouco mais tarde, houve um festival internacional de bonecos e lá no Templo Budista, além de umas adolescentes esqueléticas dançando música japonesa, uma concorrida soirée de glutoneria. Comer quatro Gyozas mergulhados no shoyu, com a lua atravessando o orbe, não lhes parece o maior dos luxos?Nesta quinta-feira, antes das sete da manhã, lá estava o homem da máscara e das luvas brancas a minha espera. Achei que iria falar da gripe suína e do sucateamento dos hospitais, mas nem sequer me cumprimentou e foi logo vociferando: Que tal o Conselho de Ética? Quê despreparo! Quê atestado de incompetência generalizado! Que ignomínia! Quê asco ver aquele bando de engravatados dando corpo a uma mísera solenidade de bufoneria e a um tosco Tribunal de Impotência! Ninguém sabe nada! Ninguém consegue formular sequer um pensamento e muito menos uma tese. Aquilo perderia feio não apenas para os obscuros tribunais da inquisição, mas até mesmo para as querelas dominicais das meninas da zona de Planaltina. E isto, que são todos “bacharéis”, “juristas”, “criminalistas”, sujeitos de “reconhecido saber” em seus feudos. Somos um país essência e irresponsavelmente gerontocrático! Uma república de velhos, de cassados e de suplentes! E é impossível “encontrar entre nós um homem absolutamente notável que não seja cabotino”. Apesar do ufanismo ingênuo de alguns, caminhamos para uma sociedade de terceira ou de quarta categoria. A astúcia por um lado e a culpabilidade lusitana por outro lesaram gravemente nosso caráter e nosso Sistema Nervoso Central. Vendemos-nos por uma caixa de charutos, temos problemas graves com a linguagem, sacrificamos sistematicamente a ética em nome do moralismo e nossa imaturidade é tamanha que, mesmo aos setenta ou oitenta anos seguimos fazemos questão de insinuar e tagarelar que somos refinadissimos malandrins, com a alma no bolso e o risinho da cavação nos lábios. Sabemos há décadas – como escrevia João do Rio – que o trabalho honrado não dá fortuna a ninguém e que se não nos esganamos fisicamente, nos esfaqueamos e nos assassinamos moral e monetariamente a cada instante. Como era de se esperar, o mais bandido, o mais cruel, o mais patife é quem vence. E é a essa pantomima nojenta e a esse embuste que se insiste em chamar de República.
Disse tudo isso num fôlego só e antes de retirar-se, corrigiu parte da declaração que havia feito ontem: a terra não é o play-ground, mas a privada do diabo!
Ezio Flavio Bazzo
Assim que cheguei ao hospital um homem alto e forte, usando máscara e luvas brancas, veio ao meu encontro para saber meu prognóstico sobre os desdobramentos da crise no dia de hoje lá no Senado. Não contente com minha vaga e niilista resposta confessou-me que sua única esperança está no vírus da gripe suína. Já imaginou aqueles gabinetes, aqueles auditórios e aqueles corredores absolutamente vazios, de luto? Perguntou-me quase em delírio. Respondi-lhe sarcasticamente que viriam de imediato os suplentes, o que seria até pior. Mas o vírus ainda estaria lá, sobre as mesas - contestou-me num segundo com ar vingativo -, nas fechaduras das toaletes, nos papéis, nos microfones, nos pacotes de dinheiro, no ar. E vinte dias depois tudo voltaria a estar vazio, fúnebre e de luto. Seria feita uma nova eleição – segui provocando – e viriam outros com o mesmo perfil, pois a escola dessa gente é sempre a mesma e mais, nesse período, a vacina já teria sido produzida e testada. Todo mundo, inclusive eles, já estaria vacinado. Vi pela frouxidão de suas pálpebras que ficou desolado e, para minha surpresa, arrematou com uma frase do desconhecido Vilén Flusser: É, não adianta, a terra é mesmo o play-ground do diabo!
Confesso que depois de longas e frustradas tentativas, entre os de minha espécie, elegi esse personagem como um de meus melhores e mais atentos interlocutores na cidade. Sempre que me aproximo de seu calabouço ele vem a meu encontro, me acena, se move e gesticula como se estivesse me relatando o odioso dia-a-dia de seu confinamento. Neste sábado, já com o sol se pondo, tive a nítida impressão que enquanto fazia pose para minha câmera, recitava com melancolia (mas também com um certo ar de vingânça) este texto de Jorge Luis Borges.