Quem mora em Brasília e vive intoxicado e envenenado pelas tramóias políticas do dia-a-dia, para não enlouquecer, (me refiro à loucura clínica) costuma passar os finais de semana num vilarejo de aspecto colonial (tipo Paraty), antigo garimpo dos portugueses que fica no Estado de Goiás, a umas duas horas de Brasília, fincado aos pés das montanhas dos Pirineus. Vilarejo atualmente conhecido aqui e ali por Pirenópolis. Esse vilarejo ultimamente habitado também por antigos hippies, naturalistas, fumadores, artesãos, astrólogos, alquimistas, ex-burocratas, poetas, músicos, fotógrafos, espiritistas, cineastas, bruxos, macrobióticos, reichianos, ioguis, antigos discípulos do OSHO, feministas, ciganos, comerciantes, algumas esotéricas e românticas mochileiras vinda da Europa, um ou outro luthier, especialistas em pedras semi-preciosas, assim como traficantes de quartzito-micáceo, mestres em ayurveda, malandrins, artífices em metais semi-preciosos, acupunturistas, feiticeiras, muitas cozinheiras em quiosques que vendem empadões recheados com guariroba e etc. etc, é cortado por um rio que leva o nome simbólico, misterioso e transcendente de Rio das Almas. Muitas das pensões, pousadas, hostels ou hoteizinhos que existem por lá (com diárias mais caras que em Berlim) foram levantados às margens desse rio dando aos hóspedes a chance e o prazer de, em plena madrugada, no meio das sinfonias dos galos, de um oceano de estrelas ou de uma homérica trepada, ouvir as lamúrias quase zen de suas correntezas. Depois de umas boas cheiradas, para fazer jus a seu nome, há quem jure ouvir relatos e estórias vindas do meio das águas e contadas por fantasmas de velhos pagés caiapós, estórias e novelas curiosas e até assustadoras dos longínquos tempos dos bandeirantes (bandidos) e da exploração do ouro... Mas, todo mundo sabe: é apenas delírio, o efeito demolidor do pó nas sinapses dos neurônios e nada mais. Eu mesmo, em várias estações do ano, passei tardes inteiras ali por debaixo de uma ponte vermelha, aquela que fica bem em frente à única cadeia da vila, construída lá por 1919 (quase sempre vazia) com os pés na correnteza, admirando os peixes que vinham beliscar minhas unhas ou os cavalos que, um pouco mais abaixo refrescavam as canelas e as ferraduras quase juntos a uma família que brincava feliz, como se estivesse na Riviera francesa, saltitando nas águas azuis do Mediterrâneo...
Pois bem, no último dia 27, depois da borrasca que houve por lá, esse rio, com suas almas, fez um estrago imenso na cidade. Dizem que não ficou paralelepipedo sobre paralelepipedo, que as paredes das casas trincaram, que as vitrines lotadas de bijuterias, artesanatos e de pratarias despencaram sob o efeito da enchente e que se via correntões, pulseiras e anéis de prata com suas falsas esmeraldas, pingentes de ágata, ametista e até de turquesa sendo levados pela enxurrada no meio de restos dos balcões da feira até desaparecerem... Que a igreja matriz construída de taipa em 1728, e recentemente restaurada com grana do Iphan, tremeu nas bases... e que os estábulos onde anualmente se realizam as festas do Divino ficaram arruinados. Dizem também, que quando as águas baixaram, para o deleite dos carcarás, havia pequenos peixes, lama e lagartixas obstruindo as calhas dos casarões e, o mais curioso, que até agora, com a cidade ainda aos pedaços, não apareceu alma nenhuma (nem dos índios, nem dos bandeirantes e nem dos velhos lusitanos) para reivindicar a autoria dos estragos...
Diz a lenda que o nome do rio surgiu a partir do juramento de um garimpador de ouro que prometeu: tão logo encontrasse um veio de ouro, mandaria rezar uma missa às almas do purgatório... O larápio teve sorte, pois hoje, segundo um dos últimos e revisionistas pontífices, o purgatório nem mais existe.
Fotos de Sergio Cruz publicadas no jornal O Popular de Goiânia
Nenhum comentário:
Postar um comentário