Nestes dias pré carnavalescos todo mundo finge tornar-se mais simpático, mais liberal e mais sexual do que geralmente é e acaba fatalmente pegando uma sífilis ou simplesmente sendo esfaqueado, intoxicado ou assaltado em algum dos insólitos pontos de lazer das cidades, sejam elas verdadeiras urbes ou, como no caso, uma melancólica aldeia.. Acabo de reencontrar o mendigo K. Digo reencontrar porque já o havia encontrado ontem. Agora, surpreendentemente, ia no meio da Esplanada dos Ministérios, direção Palácio da Alvorada, pulando numa perna só no meio de um chuvisco, descalço, as unhas dos pés sanguinolentas, com uma camisa vermelha colada às costelas, meia garrafa de cachaça no bolso traseiro, com um visível sarcasmo na cara e simulando espontaneidade no meio de um exército de otários e de alucinados. Era um dos poucos que não estava vestido a rigor e talvez por isso se destacava e se diferenciava tanto no meio de todos aqueles foliões travestidos das mais esquisitas maneiras. Ao seu lado havia um que parecia um Imperador romano, outro que lembrava explicitamente a Calígula, outro que usava uma máscara estilo veneziana, mas da Madame Bovary, uma mulher que levava uma foice às costas, um anão com obesidade mórbida que assoprava numa espécie de flauta feita com chifre, outro que vestia um roupão idêntico ao do Papa Francisco e até um sujeito quase de dois metros de altura fantasiado de general que ia de braços dados com um outro, meio anoréxico, que levava na nuca uns penachos coloridos parecidos aos dos Dragões da Independência... Havia também uma moça delicada e febril, recém saída da adolescência, com suas duas pequenas tetas bem à mostra, vestida de bailarina e com o nome de Isadora Duncan escrito num cachecol recém tirado do armário. Na frente de tudo, evidentemente, ia uma daquelas fajutas bandinhas de quartel que jogava serpentinas e confetes sobre o bando e que lembrava as bandas Neo-medievais, tocando tudo o que era tipo de instrumentos, com dois homens octogenários fazendo, ora caretas de lástima, ora fingindo plenitude no alto de uma espécie de andor, maca ou de padiola... No meio de tudo, como não podia faltar, uma briga. Uns coitados chutando a cara de outros coitados... e a gritaria era geral... (ver video acima)
Quem ainda não havia tido oportunidade de conhecer as pinturas de Brueghel tinha ali, a disposição, a obra inteira, praticamente tudo, e ainda por cima, com a vantagem de que os personagens estavam em movimento e ao vivo...
Com muito esforço fui acompanhando aquele cortejo ou aquela procissão até quase o viaduto da rodoviária quando o mendigo K. separou-se do grupo e, mancando, veio ter comigo. Foi logo tomando um trago e fazendo um discurso sociológico: Estou impressionado com essa gente. Olhe para esses desgraçados e veja como fazem de tudo para "parecerem felizes"... - Deu uma gargalhada e fez uma ressalva -: Mas lembre-se: não são os únicos atores desse imenso circo.., existe uma outra tribo em uns templos perto daqui que, a uma hora dessas, contrariamente a esses idiotas, estão reunidos e fazendo, sabe o quê? Fazendo de tudo para "parecerem infelizes". Infelizes? - Retruquei - . Sim, infelizes - repetiu -. De mãos dadas ou uns sentados no colo dos outros, gritam, choram, juram, evocam, esperneiam, olham para o teto do templo e gritam em coro: hosana nas alturas! Que segundo os especialistas quer dizer: Salva-nos agora, ó tu que habitas nas maiores alturas”. Ficam uns minutos em silêncio e depois continuam falando de suas culpas e pedindo perdão, se jogam no assoalho, se descabelam, mijam nas calças, imploram as coisas mais extravagantes a um deus, no mínimo indiferente e mais prejudicial e invisível do que essa poluição (aponta para a fumaça que, misteriosamente, levanta no meio da turba)... e depois, - concluiu - enxugam as lágrimas, depositam os 10% do dízimo num saco e vão embora, extorquidos e aliviados.
Ao terminar a frase, cuspiu no asfalto e rumou para o meio da folia cantarolando e acompanhando a banda e a turba que gritava: Tudo é carnaval, tudo é carnaval, muita alegria pessoal...
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