Passei a manhã inteira deste domingo lendo Metafilosofia, livro/ tese de mestrado em filosofia (UnB) de Murilo Seabra, prefaciado pelo professor argentino Julio Cabrera, autor de Diário de um filósofo no Brasil.
Um texto de tirar o chapéu. Um míssil de alto alcance lançado contra a pobreza, a mesmice e a mediocridade das escolas e dos departamentos de filosofia do país, lugar que, ao invés de ser naturalmente um "gerador" de filósofos não faz mais do que obrigar e domesticar os alunos a comentar e a decorar as ideias de [outros filósofos], quase sempre dos já canonizados pelo mercado editorial e pela máquina cult internacional, na maioria das vezes europeus ou norte-americanos. Tente lembrar-se de já ter lido algo de um filósofo asiático, africano ou latino americano... Nenhum?! Um bom pretexto para recordar que de todas as "sacralizadas" instituições vigentes, - apesar do silêncio sepulcral dos mestres - a universidade é a que com mais urgência necessita ser revolucionada dos pés à cabeça.
Sem autorização nenhuma do autor, publico cinco ou seis trechos da referida tese, trechos que poderão dar aos leitores uma ideia do que se vai encontrar nas trezentas e tantas páginas do referido trabalho:
Sem autorização nenhuma do autor, publico cinco ou seis trechos da referida tese, trechos que poderão dar aos leitores uma ideia do que se vai encontrar nas trezentas e tantas páginas do referido trabalho:
I. Como os comentadores odeiam quem se atreve a sair do
território do reescrever para entrar no território do escrever, quem se atreve
a sair do território do repensar para entrar no território do pensar, quem se
atreve a sair do território da repetição para entrar no território da inovação!
Como eles odeiam quem se atreve a sair do território do comentar para entrar no
território do filosofar! Como eles odeiam! Como eles odeiam! Trata-se de um
ódio profundo... Trata-se de um ódio descomunal... Que fica muito bem
escondido atrás de um ar de superioridade: "Você acha que está sendo
original? Você só está repetindo o que outros filósofos já disseram! Você está
apenas reinventando a roda!", atrás de conselhos aparentemente
responsáveis: "Você deveria estudar mais a fundo a história da filosofia!
Sim, você deveria estudá-la mais a fundo! É preciso primeiro conhecer
o que já foi feito! Só depois você terá condições de saber se as suas ideias
são realmente novas! Só depois você terá condições de oferecer uma contribuição verdadeiramente original, verdadeiramente própria", e atrás de uma metafísica assustadoramente fatalista: "É impossível ser original nos dias de hoje... Nos
tempos de Tales, era possível... Nos tempos de Descartes, era possível... Nos
tempos de Heidegger, era possível... Mas nos dias de hoje? Ah, é impossível!
Tudo já foi escrito!': E o que ele está querendo é que você se conforme a fazer
o que ele faz: o que ele está querendo é que você se conforme ao uso das
funções de copiar e colar, CTRL+C e CTRL+ V. O que ele está querendo é que você
não use a sua energia! O que ele está querendo é que você abra mão das suas
forças reflexivas! O que ele está querendo é que você jamais coloque o seu
intelecto para trabalhar a todo vapor! O que ele está querendo é que você
estabeleça em seu horizonte um objetivo absolutamente medíocre: o de ser um
mero comentador, apenas um mero comentador, nada além de um mero comentador.
Pois ele estabeleceu para si mesmo um objetivo absolutamente
medíocre: o de encontrar o seu próprio Deleuze e tornar-se
mais um Roberto Machado! Pois ele estabeleceu para si mesmo um objetivo absolutamente medíocre:
o de encontrar o seu próprio Spinoza e tornar-se mais uma Marilena Chauí!
Tornar-se um comentador reconhecido, um comentador respeitado, um comentador
imbatível: o que mais pode almejar um professor de filosofia brasileiro? Sim,
os professores de filosofia brasileiros acalentam o sonho de serem eruditos. E
eles querem que os estudantes acalentem o mesmo sonho: o de serem eruditos,
apenas eruditos, nada mais do que eruditos.
II. Então, não se espante se o seu
professor desdenhar das suas ideias! Não se espante se ele tratá-las com
sarcasmo! Ele não quer que você faça o que ele não faz! Ele não quer que você
mostre que consegue fazer o que ele não consegue fazer!
III. Eu não tinha entrado no curso
de filosofia para ficar desempoeirando os clássicos, eu não tinha entrado no
curso de filosofia para virar um espanador - então, revoltei-me,
revoltei-me, revoltei-me: e gritei todos os argumentos que consegui formular
contra o fato de que os absurdos escritos pelos estudantes eram vistos de cima
para baixo (isto é, com um olhar hipercrítico), ao passo que os absurdos
escritos pelos filósofos de renome eram vistos de baixo para cima (isto é, com
um olhar hipercondescendente). Gritei, gritei, gritei - até ficar rouco - contra
aquilo que queriam fazer de mim: contra o fato de que eu não poderia optar
entre ser um filósofo e ser um espanador - contra o fato de que eu precisava,
ao contrário, optar entre ser um espanador e não ser nada dentro da
academia.
IV. É importante escrever trabalhos acadêmicos! É importante
escrever comentários! É importante escrever exegeses! É importante! De fato, não há nada mais importante aos olhos da academia... A maior parte dos professores de filosofia não está realmente interessada
no que você pensa,
não está realmente interessada nas suas ideias... Apenas em ver se
você absorveu bem a matéria! Apenas em ver se você tem uma boa memória! Apenas
em ver se você domina com destreza a arte de usar as funções CTRL+C e CTRL+ V!
Sim, o que os professores de filosofia brasileiros de hoje fazem é apenas
treinar os estudantes a usarem com destreza as funções CTRL+C e CTRL+V!
Reescreva a filosofia de Wittgenstein usando as suas palavras! Ou a filosofia
de Heidegger! Ou a filosofia de Deleuze! Ou a filosofia de Agamben!
Explique as ideias deles! Mostre que você absorveu as descobertas deles e que
você é capaz de levá-las adiante e de desdobrá-las! Mostre que você é um bom
discípulo! Mostre que você é um bom boneco de ventríloquo! Sim, mostre que você
consegue emprestar as suas cordas vocais aos pensamentos dos outros! Mostre que você pode ser um fiel porta-voz de um filósofo europeu ou norte-americano de renome! Mostre que você tem condições de entrar para o time empenhado em torná-lo um filósofo de renome!
V. A maioria dos professores não tem o menor interesse em ajudá-lo a desenvolver as suas ideias. Pelo contrário, se você mostrar a eles os seus rascunhos, eles provavelmente tentarão redirecionar a sua energia e transformá-lo em mais um exegeta. É infinitamente melhor discuti-las com amigos! Sim, é infinitamente melhor discuti-las com amigos! Não há espaço para o desenvolvimento de ideias próprias nos departamentos de filosofia brasileiros de hoje... Realmente, não há espaço... Infelizmente, não há espaço... Mas não deixe de trabalhar em seus pensamentos só pelo fato de que a universidade não serve como uma oficina!
VI. Os professores de antropologia
querem que os seus estudantes se tornem antropólogos (não simples intérpretes
de LéviStrauss ou de Viveiros de Castro). Os professores de história querem
que os seus estudantes se tornem historiadores (não simples intérpretes de
Bloch ou de Vansina). E os professores de filosofia? O que eles querem que os
seus estudantes se tornem? (...) O que os professores querem é
bem simples: que você mostre aptidão para ser um competente porta-voz de algum
filósofo supraequatorial - mais especificamente, de algum filósofo europeu ou
norteamericano... O que os professores querem é bem simples: que você mostre
que pode ser um bom boneco de ventríloquo! O que os professores querem é bem
simples: que você mostre que tem condições de entrar para o time empenhado em
canonizá-lo... Porque é absolutamente fundamental canonizá-lo! É absolutamente fundamental insuflar importância nele! Você quer ser visto
como alguém que estuda um filósofo sem importância? Então, ele precisa ser
canonizado - para que o esforço que você dispensa em estudá-lo seja justificado. (...) Ser um porta-voz do pensamento
de outrem e ser um pensador são duas coisas totalmente diferentes. O primeiro é
uma espécie de comerciante que ganha a vida importando e distribuindo
mercadorias intelectuais entre os famintos de erudição e de civilização. Ele
depende inteiramente do segundo. Ele vive às suas custas, ele vive à sua
sombra. O status que ele conquista entre os famintos é uma função
direta do status do pensador cujos direitos de importação e de
comercialização ele detém.
Se até um astrólogo considera-se filósofo, não me espanta se o seu cão citasse Hegel ou até Voltaire!
ResponderExcluirsim... tbm percebo o adestramento coletivo...
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