domingo, 16 de março de 2014

Se meu cachorro comentasse Hegel e soubesse tudo sobre Max Nordau, já poderia ser considerado um filósofo?

Passei a manhã inteira deste domingo lendo Metafilosofia, livro/ tese de mestrado em filosofia (UnB) de Murilo Seabra, prefaciado pelo professor argentino Julio Cabrera, autor de Diário de um filósofo no Brasil.
 Um texto de tirar o chapéu. Um míssil de alto alcance lançado contra a pobreza, a mesmice e a mediocridade das escolas e dos departamentos de filosofia do país, lugar que, ao invés de ser naturalmente um "gerador" de filósofos não faz mais do que obrigar e domesticar os alunos a comentar e a decorar as ideias de [outros filósofos], quase sempre dos já canonizados pelo mercado editorial e pela máquina cult internacional, na maioria das vezes   europeus ou norte-americanos. Tente lembrar-se de já ter lido algo de um filósofo asiático, africano ou latino americano... Nenhum?! Um bom pretexto para recordar que de todas as "sacralizadas" instituições vigentes, - apesar do silêncio sepulcral dos mestres - a universidade é a que com mais urgência necessita ser revolucionada dos pés à cabeça. 
Sem autorização nenhuma do autor, publico cinco ou seis trechos da referida tese, trechos que poderão dar aos leitores uma ideia do que se vai encontrar nas trezentas e tantas páginas do referido trabalho:



I. Como os comentadores odeiam quem se atreve a sair do território do reescrever para entrar no território do escrever, quem se atreve a sair do território do repensar para entrar no território do pensar, quem se atreve a sair do território da repetição para entrar no território da inovação! Como eles odeiam quem se atreve a sair do território do comentar para entrar no território do filosofar! Como eles odeiam! Como eles odeiam! Trata-se de um ódio profundo... Trata-se de um ódio descomunal... Que fica muito bem escondido atrás de um ar de superioridade: "Você acha que está sendo original? Você só está repetindo o que outros filósofos já disseram! Você está apenas reinventando a roda!", atrás de conselhos aparentemente responsáveis: "Você deveria estudar mais a fundo a história da filosofia! Sim, você deveria estudá-la mais a fundo! É preciso primeiro conhecer o que já foi feito! Só depois você terá condições de saber se as suas ideias são realmente novas! Só depois você terá condições de oferecer uma contribuição verdadeiramente original, verdadeiramente própria", e atrás de uma metafísica assustadoramente fatalista: impossível ser original nos dias de hoje... Nos tempos de Tales, era possível... Nos tempos de Descartes, era possível... Nos tempos de Heidegger, era possível... Mas nos dias de hoje? Ah, é impossível! Tudo já foi escrito!': E o que ele está querendo é que você se conforme a fazer o que ele faz: o que ele está querendo é que você se conforme ao uso das funções de copiar e colar, CTRL+C e CTRL+ V. O que ele está querendo é que você não use a sua energia! O que ele está querendo é que você abra mão das suas forças reflexivas! O que ele está querendo é que você jamais coloque o seu intelecto para trabalhar a todo vapor! O que ele está querendo é que você estabeleça em seu horizonte um objetivo absolutamente medíocre: o de ser um mero comentador, apenas um mero comentador, nada além de um mero comentador. Pois ele estabeleceu para si mesmo um objetivo absolutamente medíocre: o de encontrar o seu próprio Deleuze e tornar-se mais um Roberto Machado! Pois ele estabeleceu para si mesmo um objetivo absolutamente medíocre: o de encontrar o seu próprio Spinoza e tornar-se mais uma Marilena Chauí! Tornar-se um comentador reconhecido, um comentador respeitado, um comentador imbatível: o que mais pode almejar um professor de filosofia brasileiro? Sim, os professores de filosofia brasileiros acalentam o sonho de serem eruditos. E eles querem que os estudantes acalentem o mesmo sonho: o de serem eruditos, apenas eruditos, nada mais do que eruditos.

II. Então, não se espante se o seu professor desdenhar das suas ideias! Não se espante se ele tratá-las com sarcasmo! Ele não quer que você faça o que ele não faz! Ele não quer que você mostre que consegue fazer o que ele não consegue fazer! 

III. Eu não tinha entrado no curso de filosofia para ficar desempoeirando os clássicos, eu não tinha entrado no curso de filosofia para virar um espanador - então, revoltei-me, revoltei-me, revoltei-me: e gritei todos os argumentos que consegui formular contra o fato de que os absurdos escritos pelos estudantes eram vistos de cima para baixo (isto é, com um olhar hipercrítico), ao passo que os absurdos escritos pelos filósofos de renome eram vistos de baixo para cima (isto é, com um olhar hipercondescendente). Gritei, gritei, gritei - até ficar rouco - contra aquilo que queriam fazer de mim: contra o fato de que eu não poderia optar entre ser um filósofo e ser um espanador - contra o fato de que eu precisava, ao contrário, optar entre ser um espanador e não ser nada dentro da academia.

IV. É importante escrever trabalhos acadêmicos! É importante escrever comentários! É importante escrever exegeses! É importante! De fato, não há nada mais importante aos olhos da academia... A maior parte dos professores de filosofia não está realmente interessada no que você pensa, não está realmente interessada nas suas ideias... Apenas em ver se você absorveu bem a matéria! Apenas em ver se você tem uma boa memória! Apenas em ver se você domina com destreza a arte de usar as funções CTRL+C e CTRL+ V! Sim, o que os professores de filosofia brasileiros de hoje fazem é apenas treinar os estudantes a usarem com destreza as funções CTRL+C e CTRL+V! Reescreva a filosofia de Wittgenstein usando as suas palavras! Ou a filosofia de Heidegger! Ou a filosofia de Deleuze! Ou a filosofia de Agamben! Explique as ideias deles! Mostre que você absorveu as descobertas deles e que você é capaz de levá-­las adiante e de desdobrá-las! Mostre que você é um bom discípulo! Mostre que você é um bom boneco de ventríloquo! Sim, mostre que você consegue emprestar as suas cordas vocais aos pensamentos dos outros! Mostre que você pode ser um fiel porta-voz de um filósofo europeu ou norte-americano de renome! Mostre que você tem condições de entrar para o time empenhado em torná-lo um filósofo de renome! 

V. A maioria dos professores não tem o menor interesse em ajudá-lo a desenvolver as suas ideias. Pelo contrário, se você mostrar a eles os seus rascunhos, eles provavelmente tentarão redirecionar a sua energia e transformá-lo em mais um exegeta. É infinitamente melhor discuti-las com amigos! Sim, é infinitamente melhor discuti-las com amigos! Não há espaço para o desenvolvimento de ideias próprias nos departamentos de filosofia brasileiros de hoje... Realmente, não há espaço... Infelizmente, não há espaço... Mas não deixe de trabalhar em seus pensamentos só pelo fato de que a universidade não serve como uma oficina!


VI. Os professores de antropologia querem que os seus estudantes se tornem antropólogos (não simples intérpretes de Lévi­Strauss ou de Viveiros de Castro). Os professores de história querem que os seus estudantes se tornem historiadores (não simples intérpretes de Bloch ou de Vansina). E os professores de filosofia? O que eles querem que os seus estudantes se tornem? (...) O que os professores querem é bem simples: que você mostre aptidão para ser um competente porta-voz de algum filósofo supraequatorial - mais especificamente, de algum filósofo europeu ou norteamericano... O que os professores querem é bem simples: que você mostre que pode ser um bom boneco de ventríloquo! O que os professores querem é bem simples: que você mostre que tem condições de entrar para o time empenhado em canonizá-lo... Porque é absolutamente fundamental canonizá-lo! É absolutamente fundamental insuflar importância nele! Você quer ser visto como alguém que estuda um filósofo sem importância? Então, ele precisa ser canonizado - para que o esforço que você dispensa em estudá-lo seja justificado. (...) Ser um porta-voz do pensamento de outrem e ser um pensador são duas coisas totalmente diferentes. O primeiro é uma espécie de comerciante que ganha a vida importando e distribuindo mercadorias intelectuais entre os famintos de erudição e de civilização. Ele depende inteiramente do segundo. Ele vive às suas custas, ele vive à sua sombra. O status que ele conquista entre os famintos é uma função direta do status do pensador cujos direitos de importação e de comercialização ele detém. 

2 comentários:

  1. Se até um astrólogo considera-se filósofo, não me espanta se o seu cão citasse Hegel ou até Voltaire!

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  2. sim... tbm percebo o adestramento coletivo...

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