Sempre
que venho a São Paulo, sou doentiamente atraído para a Sé, aqui em frente à
catedral de mesmo nome, para o meio dessas palmeiras "imperiais"
onde, há décadas, se pode desfrutar de todas as loucuras de uma verdadeira e genuina
Praça dos Milagres. Os mendigos e os pedintes de Bruegel e de Bosch, aqueles
que se apinhavam ao redor da Salpetrière, não eram nada comparados com os
daqui... Inclusive a fúria das pulgas que vão se introduzindo na barra de
nossas calças ou nas dobras de nossas meias também parecem ter uma voracidade incomum
e, de tão antigas, trazem vestígios não apenas do governo de Laudo Natel, Maluf, Montoro,
Quércia, Covas, Serra, Alckmin e etc, mas de Martin Afonso de Souza e de Prudente de Morais...... com seus respectivos feudos... Aos
pedaços e aos frangalhos, esses seres sem história e sem chances de vir a ter
sequer um mausoléu, são, entre eles próprios, verdadeiros mestres na arte do cinismo e do
bullying...
De
vez em quando entram na igreja dançando de braços levantados e cambaleando...
Vão até o altar, dizem alguma blasfêmia contra uma daquelas imagens e voltam
pelo corredor central, sob os olhares de cólera dos coroinhas. Uma mulher jovem
acaba de entrar descalça, com uma saia rasgada no traseiro e a parte posterior
dos pés marcadas por arremedo de tatuagens. Foi entrando e dançando uma dança parecida
àquela dos sufis turcos, girando com os braços erguidos, a cabeça inclinada,
ora para um lado ora para outro... até chegar diante do altar onde jogou-se no
piso e lá ficou, como morta, por uns longos momentos... Outro desses seres de outro mundo
fazia, para espanto de todos os beatos que entravam e saiam daquele templo (neogótico!?), uma
espécie de performance profana logo na entrada, diante da imensa e imóvel
estátua branca de cristo...
E lá
fora, sobre as raízes de cada uma daquelas palmeiras sempre há alguém em posição
catatônica, ou dormindo, ou rindo em suas dementes alucinações. Sacos,
bengalas, garrafas, chinelos, litros de água, vidrinhos vazios de remédios, farrapos...
Apoiada na mureta de pedras está uma mulher já velha, com uma barriga de
grávida, segurando com a mão esquerda, quase só de ossos, um guarda chuva
vermelho... Nas escadarias uma negra faz um discurso, briga, por questões de
gênero, com uma plateia imaginária. Um pregador esbravejante aponta a bíblia e
o dedo para aquela marginalia irrecuperável, disfarçando o horror que sente só
em imaginar a hipótese de ter que vir a dividir o reino dos céus com aqueles
desgraçados... Um homem sem os membros inferiores passa enfiado num carrinho
feito em casa, com os pedaços de coxas ocultos sob um cobertor infecto e, um
pouco mais abaixo, um outro sujeito com ar de liberdade condicional assiste a
tudo encostado no bloco de granito onde foi chumbada a estátua do velho padre
Anchieta. Olha para os lados, meio paranóide, como um lobo faminto e como se aguardasse apenas o
momento de voltar para junto de seu carcereiro... Talvez, para passar o tempo, esteja ruminando
esta outra frase de Paul Nizan: As nódoas
da moral corrompem tudo...
Excelente, escandalosamente excelente esta sua crônica!!!
ResponderExcluirEnquanto houver alguém que escreva sobre essa gente, mesmo com um certo tom "sarcástico", mesmo que não consiga alcançar os responsáveis por essas mazelas, mesma que nada mude, ainda há esperança... O pior é observar, aqui no centro de outra metrópole, no Rio de Janeiro, os pedestres "pularem" os indigentes estendidos no meio das calçadas, como se pulassem uma pedra... Sem falar daqueles que chutam, ou pisam essas criaturas, por estarem atrapalhando a passagem... Isso é a raça humana...
ResponderExcluirSartre disse certa vez que “o inferno são os outros”...
ResponderExcluir