domingo, 23 de dezembro de 2012

Alto Paraíso & São Jorge... Misticismo barato (3)


Quando por alguma razão preciso punir-me ou expiar algum pecado mortal, planejo logo uma viagem para Pirenópolis ou para Goiás Velho. O arrependimento é sempre fulminante, imediato e certo! Agora.., quando preciso exacerbar ao máximo meus genes masoquistas, invento de vir para Alto Paraíso e São Jorge, duas aldeias cravadas aqui nas caldeiras do coração de Goiás... Se a viagem acontece em pleno verão, a linfa ferve e o martírio é mais do que certo. Desta vez vim com o pretexto de assistir às cândidas esperanças, o misticismo barato e aos rituais acrobáticos que algumas seitas prometem executar nos momentos derradeiros do fim do mundo... Terão trazido o cianureto?  Com essa gente messiânica, sabe como é.., costuma acontecer suicídios coletivos, mensagens do além y muchas otras cosas bizarras... que nenhum psicopatologista e nenhum curioso que se preze tem o direito de ignorar e de ficar hibernando em casa... Todo mundo lembra de 1995 quando 69 pirados da Ordem do Templo do Sol na Suíça e no Canadá se apagaram... E também dos outros 40 malucos da seita Heaven's gate (Porta do céu) do Rancho santa Fé, na California, que, em 1997 se imolaram durante a passagem do cometa Hale-Bopp.. etc, etc...
  Mas perdi a viagem... não veio ninguém, foi puro blefe da mídia... A turma deve ter escolhido outro lugar... Além do ritual diário dos malucos locais, nada se alterou por aqui... O calor continua infernal, não sei de quem foi a ideia de chamar isto de Alto Paraíso... melhor seria ter evocado os subterrâneos do Hades... Os efeitos dos cristais do subsolo que os místicos tanto exaltam devem interferir muito mais na nossa temperatura e nos nossos bagos de que no nosso espírito...  
Mas uma viagem sempre vale! As três horas agarrado ao volante como se pilotasse uma astronave é um tempo precioso em que brotam ideias e teorias que nunca mais se repetem... E isto é tão verdadeiro para mim que sempre que me apresentam um texto ou a obra de alguém, a primeira coisa que quero saber é se o autor dirigia pelas montanhas ou pelos desertos... Um disco voador ou uma carroça fazem o mesmo efeito... A raposa atropelada ao lado da estrada - por exemplo - com um carcará banqueteando sobre suas entranhas, é uma imagem que faz jorrar em qualquer um e em instantes, um exagero de inspirações niilistas sobre a escória da terra e outros assuntos... Até a pobre raposa, na eminência do acidente, talvez tenha lembrado das palavras de Sartre: [quanto mais sinistra é a vida, mais absurda é a morte!!!]
Lá pelas onze os pequenos botecos da vila São Jorge fecham as portas, as luzes se apagam, a solidão despenca sobre as almas, alguns paus d'água ou alguns cheira-dores de cocaína cantarolam ou choramingam em uma ou outra esquina, os cães deitam na poeira, bem no meio das ruas e a mosquitada disputa a pele insensível de nossos cotovelos... Quem consegue seguir caminhando até um pouco mais tarde pela escuridão das ruelas, quando passa perto das janelas ouve até o ronco agudo de seus moradores, indiferentes as querelas infantis dos visitantes...
Na pousada (cujo preço é o mesmo do Ibis de Londres) o silêncio é sepulcral. Entre dormido e acordado vejo um pequeno morcego tentando transpor a tela de minha janela. Mesmo com a medíocre luz que vem do quarto da frente vislumbro o brilho e as nuances de suas asas. Fico imóvel. É realmente um animal estranho. Seria uma evolução dos ratos? Interessante que o sonho de todos os seres, até mesmo das ratazanas, tenha sido sempre o de poder voar!!! O que Darwin teria escrito sobre esse bicho? Consegue sem muito esforço uma brecha entre a tela e o umbral e vem pousar sem cerimônias sobre meu braço direito. Não é grande, parece um minúsculo camundongo. Acomoda-se de maneira delicada no lugar que lhe interessa e crava os dentes em uma de minhas veias principais com uma habilidade que nenhuma enfermeira conseguiu até hoje... Não sinto nada. Causa-me uma certa repulsa apenas quando vejo seus beiços irem ficando lambuzados de sangue... Fico tentado a dizer-lhe: hoc est corpus meum et sanguis meus (este é meu corpo e este é meu sangue).... Mas permaneço em silêncio. Ficou ali não menos que três minutos. Retirou a boca da cisão, assoprou para estancar a sangria e para não acordar-me e retirou-se convicto de que a ceia dos próximos dias estaria garantida... Apesar de vampiro, ignora que já estou com um pé na estrada...

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