...Pela janela dos
fundos, além dos telhados seculares, a visão da Torre de Esmeralda levantada a beira do rio Yangtzé, uma das
belezas pós-modernas desta misteriosa cidade, palco de muitas das mais
espetaculares loucuras dos últimos mil e setecentos anos... E é pelo Rio Yangtsé que ininterruptamente
deslizam barcos de todos os tamanhos, uns com cargas invisíveis, outros com
algo parecido a ferro, carvão, chá, peças manufaturadas, containers imensos e lotados de porcarias conduzidos por cinco ou
seis marinheiros aparentemente ébrios e alheios a este mundo como o eram os
antigos piratas asiáticos. Aponto minha teleobjetiva num deles que vai sentado
sobre a escotilha, aliás, sobre a proa, fumando um pequeno cachimbo com arremates de prata e a imagem
recorda aquele corsário famoso Pinyin
Zehng Zhilong que, por ter sido batizado pelos portugueses de Macau passou a
chamar-se: Nicolau Gaspar... Nicolau Gaspar!? Quê nome esdrúxulo para um bucanero! A propósito, quê lugar do planeta os
portugueses não salpicaram de veneno com seus anzóis e com seu Lusíadas?
Quantos demônios,
dragões, morcegos, entes extragalácticos deviam surgir na fumaceira daquelas
antigas pipas enquanto incineravam seus pedregulhos de ópio!!!
Os navios se entrecruzam
levando mercadorias de terceira qualidade, excrementos da
"prosperidade" que deslizarão pelos cinco mares e acabarão chegando a
todas as conhecidas Feiras-do-Paraguai e Feiras-livres-de-Miami para daí
se infiltrarem como bacilos em todos cortiços caribenhos e latino-americanos...
No meio da noite ou já
de madrugada, quando normalmente estou me refazendo de um ou outro pesadelo com
dragões e perolas, com demônios, cachimbos e deuses da Dinastia Mongol ou
simplesmente com as fotos em P&B da Grande Marcha, costumo ficar a espreita
de seus apitos, quase sempre graves. Existirá algo mais "lirico" e insinuante que o apito
de um navio no meio da noite? E é imediata a ambiguidade de sentimentos e de
emoções que me causam, só comparada mesmo a cantoria dos galos que, aliás, até
agora não ouvi por aqui. Muita gente pensa que os, sinos, os sinais de luzes ou
os apitos são apenas saudações que os marinheiros estão dando às putas que
deixaram no cais, mas não é isso não. Cada um tem seu significado. Um apito
curto, por exemplo, quer dizer aos outros navios: estou guiando para estibordo.
Dois apitos curtos: estou guiando para bombordo... e assim por diante...
A volta ao mundo! Ter
descoberto que a terra era redonda foi um golpe duro no imaginário daqueles que
gostariam de partir em linha reta sem ter jamais que voltar. Mas não, gira-se,
gira-se, gira-se e se está sempre no mesmo lugar... Que indigência!
Quatro apitos, dois
graves e dois mais agudos ao mesmo tempo. Chegando ou partindo? Os dois
momentos cruciais de qualquer aventura, de qualquer viagem e de qualquer
vida!.. No meio só costuma haver bobagens, carências, ficções, besteiras,
ansiedades.
O que há no amanhã,
doutor? No amanhã, minha senhora? No amanhã não há absolutamente nada!
Veja aquele homem que
vende tesouras ali na esquina... É apenas um esqueleto que se move. Ligando uns
de seus ossos aos outros há apenas carne e ligamentos, dois materiais
facilmente perecíveis. Se não estivesse disfarçado sob a roupa, entenderias
mais facilmente o que lhe digo.... Não é nada. Se não existisse, em nada
alteraria este e qualquer outro momento. Seus olhos são duas bolotas de água, o
cérebro uma nós sanguinolenta, seus dentes são como estacas para protegerem a
entrada do grande túnel que se abre entre seus lábios... Pensa que enxerga, mas
é tudo ilusão. Sombras... (mais radicais ainda que aquelas da metáfora
platônica) que o sol projeta nas estalactites multicores da caverna... Pense
bem: quê sentido tem passar a vida vendendo tesouras? Haverá algo mais idiota
que uma tesoura? Sim, inútil, mesmo que imagines a uma mulher míope usando-a
para cortar alguns pentelhos ou uma peça de seda e depois bordar um dragão
vermelho ou o Temple of God sobre ela... Veja o barbeiro corcunda e
tagarela devastando a barba espessa de um mandarim... Para quê? Para que a
tesoura, a seda, o dragão vermelho, o barbeiro, os pentelhos, o Templo de God e
o mandarim??? Os seres, e o homem em especial, não valem e não servem para
quase nada! Detestem ou não a ordem estabelecida. Intriga-me saber que aqui na
China quando executam um traidor, algum marginal, algum inimigo do Estado ou
algum herege político com um tiro na nuca, mandam para a família ou para o clã
do morto, além da fatura, o cartucho vazio e a bala ensanguentada. Será que é só
para comprovar que o gasto foi efetuado? Para estender sobre os ancestrais do
morto a mesma ameaça.., ou para dar consciência da mixaria que se vale? Haverá
maior ceticismo e maior niilismo do que esse! É até cômico pensar que um
soldadinho de bosta desses que circulam por aí, é capaz, apenas com sua
pistola, de dar de dez a zero na pretensão de Schopenhauer de ser o pai do
ceticismo... E dizem que brevemente irão construir a maior torre do mundo. Para
quê?, não sei, mas acredito. Com mais de um bilhão de esôfagos disponíveis
poderiam, se quisessem, até retomar, e com sucesso, aquele projeto falacioso de
Babel, chegar aos céus e vender também por lá suas bugigangas a Buda, a Krishna, a
Jeová, a Cristo, a Maomé... a quem mais mesmo??? E saber que muita gente (até letrada!) acredita piamente
que aquele bando de ignorantes e de impostores bíblicos realmente existiu! Onde
ficava mesmo a encruzilhada entre o Tigre e o Eufrates? Apesar de alguns babacas queimando incenso por aí, parece evidente que também para os chineses Deus é uma hipótese inútil!!.. Nunca houve e não há céu e nem divindade alguma! Tanto para
“cima” como para “baixo” como para os "lados" só há nuvens,
imensidão, velocidade, tofú frito, geleiras, falta de ar, tempestades de
granizo, funcionários fazendo tai chi chuan, silêncio, bicicletas estacionadas, solidão, vazio... vagabundagem eterna... Quer mais?..