segunda-feira, 17 de novembro de 2025

O Mendigo K e as origens da sociedade dos pidões... (as tais varejeiras da piedade...)





 Neste período do ano, todo mundo sabe, (quando as aves de rapina se mandam para Paris ou para Londres...), as avenidas de Brasília recebem pedintes e mendigos de vários estados do país. Armam suas barracas e redes por aí, entre as árvores, acendem uma pequena fogueira e permanecem no umbral desses 'cortiços', ao lado de suas 'esposas' e da prole até o Natal e o Fim de Ano. Como já conhecem a rotina dos burocratas, em horários especiais se deslocam para a porta dos mercados, para os fundos dos restaurantes, para o estacionamento dos ministérios e para os semáforos... para ali implorar por restos e migalhas, e sempre em nome de um suposto Deus. E cada um tem uma justificativa própria para sua desgraça: Uma doença, a fome dos filhos, o desemprego, o abandono, a solidão, a expulsão do mundo...

Hoje pela manhã, na padaria de sempre, onde estavam reunidos uns dez desses miseráveis, apareceu inesperadamente o Mendigo K, falou com um e com outro em voz baixa e em seguida, dirigindo-se ao padeiro e seus agregados que resmungavam com a presença daqueles famintos, indagou: querem saber a origem da mendicância no País? Retirou de um saco plástico 4 ou 5 folhas de um livro que já nem existe mais e foi lendo: "Naqueles dias, no Rio de Janeiro de 1794 e influenciada pela religião, criou-se a Sociedade dos pidões. Pedia-se sem constrangimento algum e ninguém se envergonhava disso. Era raro que alguém demonstrasse vergonha por estar pedindo. E não raro se via até homens ricos pedindo dádivas. Houve até oficiais do exército (uns com medalhas de bravuras) que, à medida que a vida ia se tornando mais dispendiosa, convertiam-se humildemente em suplicantes da caridade. E esse sistema de esmola foi introduzido lá pelo clero para fazer dinheiro fácil... "(...) Fez um breve silêncio e continuou:

"Pelas ruas centrais de balandraus vistosos e coloridos, nas mãos ávidas, pires, sacos, sacolas ou bacias de prata, andam rapagões válidos e corados, pedindo uns para a cera do Santíssimo, outros para a missa das almas, para o conserto de igrejas velhas, para a construção de capelas novas... São os irmãos pedintes, os opas que não alardeiam as rendas que possuem, ganhas no estranho ofício, só para que lhes não corte a grande pepineira... (...) Não se entra numa rua, num beco; não se atravessa um lago ou se penetra uma alfurja, sem ter diante dos olhos a goela escancarada de uma sacola ou de uma bacia de prata, e logo a voz pia e choramingas do andador tentando arrancar-nos com insistência o vintenzinho da devoção. São as varejeiras da piedade. Irrompem de todos os cantos da cidade. Saem de todas as portas abertas, isso desde que nasce o dia até as últimas horas do poente. Na ânsia de pejar a receita, fazem mesmo parar cadeirinhas, correm atrás das carroças, enfiam-se pelas lojas de negócio, até pelas rótulas das casas de família. Uns trazem a vara de prata do Santíssimo, muitas vezes suja de lama e sangue. Outros, vão de bengala de jacarandá, de cujo topo saem oratoriozinhos de emergência, minúsculos, cheirando a incenso, a flor com um santo qualquer açulando a piedade do fiel. Outros, trazendo apenas dentro de uma bandeja enorme, uma imagem de pau de uma estampa emoldurada em vidro e o infalível alforje da receita a chocalhar moedas. Não há cristão que recuse a sua esmola, beijando o santinho, ou a vara que o andador conduz. Não há lábio que se recuse a tão anti-higiênico manejo:

_ Para a cera do altíssimo!

- Para as obras da capela!

- Para a missa das almas!

- Para as alminhas de Deus!

- Para a festa de Nossa Senhora!


Entre os soldados, o pedinchão da tropa o soldado das milícias, pede para fumar, para beber para ir ao teatro de bonecos ou à enxerga das barregãs, num vêzo antigo e degradante, arreganhando a generosidade do transeunte, insistentes e cínicos. 

Os presidiários também pediam esmolas. O preso, no regime colonial não era mantido pelo Estado, senão pelas suas famílias, seus senhores, patrões ou seus amigos. Os que não tinham tais esteios que tratassem de esmolar para não morrer de fome. Havia correntes enormes que os faziam chegar, por vezes, até ao meio da rua, onde os infelizes ficavam ao sol e à chuva, à espera das almas caridosas que passassem. Só os cárceres da inquisição conseguiram ser mais ignóbeis e sinistros.

Pedir, convertera-se em costume do clero, dos presidiários, dos militares, de pessoas da sociedade e de todos quantos viviam na miséria.

Pelos ângulos das ruas onde existem oratórios, ou pelos adros das capelas e das igrejas, está a praga miseranda dos mendigos. Quase todos são negros e velhos. O molambo inútil da escravidão, o trapo das senzalas que o senhor atira fora das portas para apodrecer o mais longe possível da casa risonha e próspera; o estômago de menos na morada a pobre boca que fica pelas ruas a gemer, a chorar a pedir, a mão em riste, a voz rouquinha e a alma cansada e triste.

- Uma esmolinha pelo amor de Deus!

Quase nus com os membros cobertos de feridas, quando não estão deformados pela elefantíase, pela lepra ou por chagas asquerosas. Num país de fartura, não têm o que comer. Num país de religião, não têm quem os proteja. Semimortos, enterrados na própria miséria, a cada vulto que passa estendendo a mão trêmula, mão murcha e espectral, feita apenas de pele e ossos... inspirando aos que os vêem ao mesmo tempo nojo e piedade."

Fez aqui outro silêncio e continuou com mais veemência"

"O mendigo do Brasil não tem o brilho teatral do mendigo lusitano. É um reles figurino de Colônia, de pulmão precário e de úlceras normais. Nem farrapos dramáticos ostenta, mostrando quase sempre, apenas, como roupa, um breve cobre sexo, trapo vil, pano vão com que ele julga corpos a miseranda e esquálida anatomia mal provida de carnes e de músculos...

Enfim: ESMOLA era o vocábulo que mais se ouvia nas ruas da corte, quer de andrajosos mendigos, como de clérigos penitentes ou asquerosos vadios; óbolos, eram as esmolas enfeitadas, aonde as mãos em concha, estendidas, se aboliam, e as melífluas palavras as substituíam; dádivas, eram óbolos espontâneos; doações eram as mesmas dádivas elevadas ao quadrado..."

Terminou a leitura quase babando e, dirigindo o olhar na direção dos que lotavam a padaria, (cada um já com seus pacotes de salames, croissantes, madeleines, croque-monsieur e croque-madames na bolsa) e bradou: enfim, petite burguesia delirante, lembrem-se que, apesar das pompas e da presunção, somos todos descendentes daqueles pobres indigentes!!!

Ver: A velhice no Brasil, de Mario Filizzola, pp 72, 73,74,75. Rio de Janeiro, 1972








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