O Mito da Doença Mental
N. do Editor: Este ensaio é o segundo capítulo da obra “Ideologia e Doença Mental”, escrita pelo renomado psiquiatra e libertário húngaro Thomas Szasz. A edição de onde este enxerto foi retirado corresponde à publicada pela Editora Zahar, em 1980, no Brasil.
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I
Na essência de praticamente todas as teorias e práticas psiquiátricas contemporâneas repousa o conceito de doença mental. Um exame crítico desse conceito é, consequentemente, indispensável para compreender as ideias, instituições e procedimentos dos psiquiatras.
Meu objetivo nesse ensaio é questionar se existe o que se chama de doença mental e defender a ideia de que não existe. Sem dúvida, doença mental não é uma coisa ou objeto físico; portanto, só pode existir da mesma maneira que os outros conceitos teóricos. No entanto, as teorias conhecidas tendem a aparecer, mais cedo ou mais tarde, para aqueles que nelas acreditam, como “verdades objetivas” ou “fatos”. Em certos períodos históricos, conceitos explicativos tais como divindades, feiticeiras e instintos apareceram, não somente como teorias, mas como causas evidentes por si de um vasto número de eventos. Hoje em dia a doença mental é vista, largamente, de um modo semelhante, ou seja, como a causa de inúmeros acontecimentos diferentes.
Como antídoto ao uso complacente da noção de doença mental – como um fenômeno, teoria ou causa é evidente por si – perguntemos: o que se quer dizer quando se afirma que alguém é doente mental? Nesse ensaio descreverei os principais usos do conceito de doença mental, e demonstrarei que essa noção tem sobrevivido a despeito da utilidade que possa ter tido para o conhecimento, e que agora funciona como um mito.
II
A noção de doença mental é apoiada principalmente por fenômenos tais como a sífilis cerebral[i] ou os estados de delírio – intoxicações, por exemplo – nos quais as pessoas podem manifestar certas desordens do pensamento e comportamento. Com precisão, contudo, essas são doenças do cérebro, não da mente. De acordo com certa escola de pensamento, toda assim chamada doença mental é desse tipo. A suposição é de que algum defeito neurológico, talvez muito tênue, será por fim encontrado parar explicar todas as desordens de pensamento e comportamento. Muitos médicos, psiquiatras e outros cientistas contemporâneos mantiveram esse ponto de vista, o qual implica a inferência de que os problemas das pessoas não podem ser causados por necessidades pessoais conflitivas, opiniões, aspirações sociais, valores e assim por diante. Essas dificuldades – as quais, penso, possam ser chamadas simplesmente de problemas existenciais – são desse modo atribuídas a processos psicoquímicos que, em tempo devido, serão descobertos (e sem dúvida corrigidos) pela pesquisa médica.
As doenças mentais são, assim, consideradas como basicamente similares às outras doenças. A única diferença, nessa perspectiva, entre doença mental e corporal é que a primeira, afetando o cérebro, manifesta-se por meio de sintomas mentais; enquanto que a ultima, afetando outros sistemas do organismo – por exemplo, a pele, o fígado e assim por diante – manifesta-se por sintomas referentes àquelas partes do corpo.
Em minha opinião, essa perspectiva é baseada em dois erros fundamentais: em primeiro lugar, uma doença do cérebro, análoga a uma doença da pele ou dos ossos, é um defeito neurológico, não um problema existencial. Por exemplo, um defeito no sistema visual de uma pessoa pode ser explicado, correlacionando-o a certas lesões no sistema nervoso. Por outro lado, a crença de uma pessoa – seja no cristianismo, no comunismo, ou na ideia de que seus órgãos internos estão apodrecendo e seu corpo já está morto – não pode ser explicada por um defeito ou doença no sistema nervoso. A explicação desta sorte de fenômeno – supondo-se que o pesquisador se interesse pela crença em si e não a considere simplesmente como um sintoma ou expressão de algo mais significativo – deverá ser procurada em várias fontes.
O segundo erro é epistemológico. Consiste em interpretar comunicações entre nós e o mundo ao nosso redor como sintomas de funcionamento neurológico. Esse é um erro não de observação e raciocínio, mas de organização e expressão do conhecimento. Nesse caso, o erro está em estabelecer um dualismo entre sintomas mentais e físicos, um dualismo que é um hábito de linguagem e não o resultado de observações conhecidas. Vejamos se não é assim.
Na prática médica, quando falamos de distúrbios físicos, pensamos ou em sinais (por exemplo, a febre) ou sintomas (por exemplo, a dor). Falamos de sintomas mentais, por outro lado, quando nos referimos às comunicações do paciente consigo próprio, com os outros, com o mundo que o rodeia. O paciente pode afirmar que é Napoleão, ou que está sendo perseguido pelos comunistas; estes seriam considerados sintomas mentais somente se o observador não acreditar que o paciente seja Napoleão, ou que esteja sendo perseguido pelos comunistas. Isso torna evidente que a afirmação de que “X é um sintoma mental” implica fazer um julgamento que traz a comparação oculta entre as ideias conceitos ou crenças do paciente e as do observador e da sociedade em que vivem. A noção de sintoma mental está, desse modo, intrincadamente ligada ao contexto social e particularmente ético no qual é elaborada, assim como a noção de sintoma físico está ligada a um contexto anatômico e genético.[ii]
Concluindo: para quem considera os sintomas mentais como sinais de doença cerebral, o conceito de doença mental é desnecessário e enganador. Se querem dizer que as pessoas assim rotuladas sofrem de doenças cerebrais, parece melhor, para fins de clareza, dizer somente doenças cerebrais e nada mais.
III
O termo “doença mental” é também de amplo uso para descrever algo totalmente diferente de doença cerebral. Atualmente muitas pessoas têm como certo que viver é uma tarefa árdua. A dificuldade da vida para o homem moderno deriva não tanto da luta pela sobrevivência biológica quanto das depressões e tensões inerentes à interação social entre personalidades humanas complexas. Nesse contexto, a noção de doença mental é usada para identificar ou descrever algum aspecto da assim chamada personalidade de um indivíduo. Doença mental – como deformação da personalidade, por assim dizer – é, então, vista como a causa a desarmonia humana. Está implícito nessa explicação que a interação social entre pessoas, é vista como algo inerentemente harmonioso, sendo o seu distúrbio devido somente à presença da “doença mental” em várias pessoas. Está claro que esse raciocínio é falho, porque faz da abstração “doença mental” a causa de certos tipos de comportamento humano, apesar desta abstração ter sido originalmente criada para servir somente como expressão taquigráfica para aqueles. Torna-se, aqui, necessário perguntar: que tipos de comportamento são considerados como indicativos de doença mental, e comportamento de quem?
O conceito de enfermidade, seja física ou mental, implica desvio de alguma norma claramente definida. No caso de enfermidade física, a norma é a integridade estrutural e funcional do corpo humano. Assim, apesar da conveniência da saúde física como tal ser um valor ético, a questão o que é a saúde pode ser respondida em termos anatômicos e fisiológicos. Qual é a norma da qual o desvio é considerado doença mental? Essa questão não pode ser respondida facilmente, mas, qualquer que seja a norma, podemos estar certos de uma coisa: essa deve ser estabelecida em termos de conceitos psicossociais, éticos e legais. Por exemplo, noções tais como “repressão excessiva” e “agindo de acordo com um impulso inconsciente” ilustram o uso de conceitos psicológicos para julgar a assim chamada “saúde” e “doença mental”. A ideia de que a hostilidade crônica, vingatividade, ou o divórcio são indicativos de doença mental ilustra o uso de normas éticas (isto é, anelo por amor, delicadeza, um relacionamento conjugal estável). Finalmente, a opinião psiquiátrica difundida de que somente uma pessoa mentalmente perturbada cometeria um homicídio ilustra o uso de um conceito legal como uma norma de saúde mental. Em resumo, quando alguém fala de doença mental, a norma à qual o desvio é comparado é um padrão psicossocial e ético. Contudo, o medicamento é procurado em termos de medidas médicas que – se espera e se supõe – são livres da vasta gama de valores éticos. Desse modo, a definição e os termos os quais se pesquisa a cura da perturbação diferem bastante. O significado prático desse dissimulado conflito entre a alegada natureza da falha e a cura real só dificilmente poderia ser exagerado.
Tendo identificado as normas usadas para medir os desvios nos casos de perturbação mental, voltemo-nos para a questão: quem define as normas e os consequentes desvios? Duas respostas básicas podem ser oferecidas: primeiro, pode ser a própria pessoa – isto é, o paciente – quem decide se se desvia de uma norma; por exemplo, um artista pode acreditar que sofre de uma inibição para o trabalho e pode corroborar essa conclusão procurando, ele próprio, a ajuda de um psicoterapeuta. Ou pode ser outra pessoa, que não o “paciente”, quem decide se este é perturbado – por exemplo, os parentes, médicos, autoridades legais, a sociedade em geral; o psiquiatra pode, então, ser contratado por outros, que não o “paciente”, para fazer-lhe algo para corrigir o desvio.
Essas considerações acentuam a importância de questionar: o psiquiatra é agente de quem?, e de dar uma resposta franca à mesma. O psiquiatra (ou psicoterapeuta de outra formação não médica) pode ser agente do paciente, dos familiares, da escola, do serviço militar, de uma empresa, corte judiciária, e assim por diante. Falar do psiquiatra como agente dessas pessoas ou organizações não implica que seus valores morais, ou suas ideias e objetivos com relação à natureza ideal da Psicoterapia, devam coincidir exatamente com aquelas de seu empregador. Por exemplo, um paciente de psicoterapia individual pode acreditar que sua salvação está num novo casamento; seu psicoterapeuta não precisa compartilhar dessa hipótese. Como agente do paciente, contudo, não deverá recorrer à força legal ou social para impedir seu paciente de pôr em prática suas crenças. Se o seu contrato é com o paciente, o psiquiatra (psicoterapeuta) pode não concordar ou parar o tratamento, mas não pode envolver outros para obstruir as aspirações do paciente.[iii] Da mesma forma, se um psiquiatra é requisitado por uma corte para determinar a sanidade de um delinquente, não precisa compartilhar plenamente dos valores e intenções das autoridades legais com relação ao criminoso, nem dos meios por elas considerados apropriados para tratar com o criminoso; tal psiquiatra não pode, contudo, testemunhar que o acusado não é insano, mas que os legisladores o são – por aprovar a lei que decreta as ações de delinquentes como ilegais.[iv] Esse tipo de opinião poderia emitida, é claro – mas não num tribunal, e não por um psiquiatra que lá está para assistir a corte a realizar seu trabalho cotidiano.
Para recapitular: no uso social contemporâneo, supõe-se que a doença mental se estabeleça a partir de um desvio de comportamento de certos padrões psicossociais, éticos ou legais. O julgamento pode ser feito, como na Medicina, pelo paciente, pelo médico (psiquiatra), ou outros. A ação terapêutica tende finalmente a ser procurada numa estrutura médica. Isso cria uma situação na qual se afirma que os desvios psicossociais, éticos e legais podem ser corrigidos pela ação médica. Já que as intervenções médica são designadas para curar somente problemas médicos, logicamente é absurdo esperar que resolvam problemas cuja existência tem sido definida e estabelecida em bases não médicas.
IV
Qualquer coisa que as pessoas façam – em contraste com o que Ihes aconteça[v] – tem lugar num contexto de valores. Assim, nenhuma atividade humana é desprovida de implicações morais. Quando os valores que sustentam certas atividades são largamente compartilhados, quem deles participam não raro os perde de vista. A disciplina da Medicina – tanto como ciência pura (por exemplo, a pesquisa), como enquanto ciência aplicada ou tecnológica (por exemplo, terapia) – contém muitas considerações e julgamentos éticos. Infelizmente, esses são frequentemente negados, minimizados ou obscurecidos, porque o ideal da profissão médica, bem como das pessoas a quem serve, é ter um sistema de atenção médica ostensivamente isento desses valores. Essa noção sentimental é expressa por fatores tais como o desejo do médico de tratar todos os pacientes a despeito de sua religião ou credo político. Mas tais afirmações só servem para obscurecer o fato de que as considerações éticas englobam uma vasta série de questões humanas. Tornar a prática médica neutra com respeito a algumas questões específicas de valor moral (tais como raça ou sexo) não deve querer dizer, e sem dúvida não significa, que isso possa ocorrer quanto a outras questões morais (tais como controle da natalidade ou regulamentação de relações sexuais). Assim, controle da natalidade, aborto, homossexualismo, suicídio e eutanásia continuam a representar problemas importantes para a ética médica.
A Psiquiatria está muito mais intimamente relacionada aos problemas éticos que a Medicina em geral. Utilizo aqui a palavra “Psiquiatria” para me referir à disciplina contemporânea concernente aos problemas existenciais, e não às doenças cerebrais, pertencentes à Neurologia. As dificuldades nas relações humanas podem ser analisadas, interpretadas e dotadas de significado somente dentro de contextos sociais e éticos específicos. Analogamente, as orientações sócio-éticas do psiquiatra influenciarão suas opiniões sobre o que há de errado o paciente, o que merece comentário ou interpretação, em que direções a mudança seria desejável, e assim por diante. Mesmo na própria Medicina esses fatores têm um papel, ilustrados pelas orientações divergentes que os médicos, dependendo de sua filiação religiosa, têm com relação a coisas tais como o controle da natalidade e o aborto terapêutico. Alguém poderá realmente acreditar que as ideias do psicoterapeuta sobre religião, política e questões correlatas não exercem um papel em seu trabalho prático? Se, por outro lado, têm importância, que devemos inferir disto? Não parece razoável que talvez devêssemos ter diferentes terapias psiquiátricas – cada uma delas reconhecida pelas posições éticas que incorpora – para, por exemplo, católicos e judeus, religiosos e ateus, democratas e comunistas, racistas e negros, e assim por diante? De fato, se olharmos para o modo como a Psiquiatria é praticada atualmente, sobretudo nos Estados Unidos, veremos que as intervenções psiquiátricas que as pessoas procuram e recebem dependem mais de seu status socioeconômico e credos morais do que das “perturbações mentais” de que ostensivamente sofrem. Esse fato não deveria causar surpresa maior do que o fato de católicos praticantes raramente frequentarem clínicas de controle da natalidade, ou cientistas cristãos pouco consultarem psicanalistas.
V
A posição delineada acima – os psicoterapeutas contemporâneos lidam com problemas existenciais, não com doenças mentais e suas curas – está em agudo contraste com a posição hoje prevalente – os psiquiatras tratam de doenças mentais, que são tão “reais” e “objetivas” como as doenças físicas. Suponho que os defensores da última hipótese não têm qualquer evidência para justificar sua afirmação, que é na realidade uma espécie de propaganda psiquiátrica: seu objetivo é criar na mentalidade popular uma convicção de que a doença mental é um tipo de entidade patológica, como uma infecção ou moléstia. Se fosse verdade poder-se-ia apanhar ou contrair uma doença mental, poder-se-ia ter ou acolher, poder-se-ia transmiti-la para outros, finalmente, poder-se-ia livrar dela. Não somente não há um mínimo de evidências para sustentar essa ideia, como pelo contrário, todas as evidências apontam o ponto de vista contrário: que o que hoje as pessoas chamam de doenças mentais são em grande parte comunicações, expressando ideias inaceitáveis frequentemente organizadas dentro de uma linguagem incomum.
Esse não e o lugar mais adequado para considerar em detalhes as semelhanças e diferenças entre as doenças mentais e físicas. É suficiente enfatizar que, enquanto o termo “doença física” se refere a ocorrências físico-químicas que não são afetadas ao tornar-se públicas, o termo “doença mental” refere-se a eventos sócio-psicológicos, crucialmente afetados quando tornados públicos. O psiquiatra desse modo não pode, e não consegue, ficar alheio à pessoa que observa, como pode fazer e o faz o patologista. O psiquiatra está comprometido com um quadro daquilo que considera a realidade e com o que pensa que a sociedade considera real; observa e julga o comportamento do paciente à luz dessas crenças. A simples noção de “sintoma mental” ou de “doença mental”, desse modo, implica uma comparação dissimulada e frequentemente em conflito, entre observador e observado, psiquiatra e paciente. Apesar de óbvio, esse fato precisa ser reenfatizado como no caso de alguém que, como eu, deseja contra-atacar a tendência prevalente de negar os aspectos morais da Psiquiatria e substituí-los por conceitos e intervenções médicas pretensamente isentas.
A Psicoterapia é, pois, praticada como se não acarretasse nada além de restaurar o paciente de um estado de enfermidade mental para um estado de sanidade mental. Enquanto for geralmente aceito que a doença mental tem algo a ver com as relações sociais ou interpessoais do homem, paradoxalmente se sustentará que os problemas de valores – isto é, da Ética – não aparecem nesse processo. O próprio Freud foi longe o suficiente para afirmar: “Considero a Ética como já sistematizada. Na realidade não fiz nada de significativo”. Essa e uma afirmação assombrosa em particular, para alguém que estudou o homem como um ser social tão profundamente quanto Freud. Menciono-a aqui para mostrar como a noção de “doença” – no caso da Psicanálise, “Psicopatologia”, ou “doença mental” – foi usada por Freud, e pela maioria de seus seguidores, como meio de classificar certos tipos de comportamento humano, como que dentro do âmbito da Medicina e, desse modo, por decreto, fora do domínio da Ética. No entanto, de fato permanece que, em certo sentido, grande parte da Psicoterapia gira em torno da elucidação e avaliação de objetivos e valores – muitos dos quais podem ser mutuamente contraditórios -, e os meios pelos quais podem ser melhor harmonizados concretizados ou abandonados.
Devido à longa série de valores humanos e de métodos pelos quais podem ser atingidos – e porque muitos dos fins e meios são persistentemente desconhecidos -, os conflitos de valores são a principal fonte de conflitos nas relações humanas. De fato dizer que as relações humanas a todos os níveis – da mãe à criança, do marido à esposa, de nação a nação – são carregadas de depressão, tensão e desarmonia é, mais uma vez, tornar o óbvio explícito. E no entanto, o que pode ser óbvio pode também ser parcamente compreendido. E isso é, creio, o que ocorre nesse caso, pois a mim parece que, em nossas teorias científicas de comportamento, falhamos em aceitar o simples fato de que as relações humanas são inerentemente carregadas de dificuldades e que torná-las, mesmo relativamente, harmoniosas requer muita a ciência e trabalho árduo. Sugiro que a ideia de doença mental esteja agora sendo trabalhada para obscurecer certas dificuldades que no presente possam ser inerentes – não que sejam irremovíveis – às relações sociais das pessoas. Se isso é verdade, o conceito funciona como um disfarce: em vez de chamar atenção para necessidades, aspirações e valores humanos conflitantes, o conceito de doença mental produz uma “coisa” moral e impessoal – uma “doença” – como uma explicação para problemas existenciais. Com relação a isto podemos nos lembrar que, não faz muito tempo, os diabos e as feiticeiras eram responsáveis pelos problemas na vida do homem. A crença na doença mental, como algo diferente do problema do homem em conviver com seus semelhantes, é a própria herdeira da crença em demônios e feitiçaria. Assim, a doença mental existe ou é “real” exatamente no mesmo sentido no qual as feiticeiras existiam ou eram “reais”.
VI
Enquanto sustento que as doenças mentais não existem, obviamente não sugiro ou quero dizer que as ocorrências sociais e psicológicas às quais este rótulo é fixado também não existam. Tanto quanto os problemas pessoais e sociais que se tinha na Idade Média, os problemas humanos contemporâneos são suficientemente reais. O que me preocupa são os rótulos que lhes damos e, tendo-lhes rotulado, o que fazer a respeito. O conceito demonológico dos problemas existenciais deram lugar à terapia baseada em linhas teológicas. Hoje, a crença em doença mental implica – ou melhor, requer – uma terapia baseada em linhas médicas ou psicoterápicas.
Não me proponho aqui a oferecer uma nova concepção de “doença psiquiátrica” ou uma nova forma de “terapia”. Meu objetivo é mais modesto e, no entanto, ao mesmo tempo mais ambicioso; é sugerir que o fenômeno atualmente chamado de doenças mentais fosse revisto e, mais simplesmente que fosse removido da categoria de doenças, e que fosse considerado como expressões do esforço do homem com o problema de como ele deveria viver. Esse problema é sem dúvida vasto, sua enormidade refletindo não somente a inabilidade do homem em fazer frente ao seu ambiente, como também, e até mais, seu crescente grau de autorreflexão.
Por problemas existenciais, pois, refiro-me àquela explosiva reação em cadeia que começou com a perda pelo homem da graça divina ao tomar do fruto da árvore do conhecimento. A conscientização do homem de si mesmo e do mundo que o cerca parece estar numa constante expansão, trazendo em seu despertar uma sempre maior carga de conhecimento.[viii] Esta carga é esperada e não deve ser mal interpretada. Nosso único meio racional para amenizá-la é adquirir mais conhecimento e agir de forma apropriada, baseando a ação neste conhecimento. A principal alternativa consiste em agir como se a carga não fosse o que percebemos que é, e refugiarmo-nos na antiga visão teológica do homem. Nessa perspectiva o homem não modela sua vida nem muito do mundo que o cerca, mas meramente vive seu destino num mundo criado por seres superiores. Isso pode, logicamente, levá-lo a pleitear a não-responsabilidade em lugar de dificuldades intransponíveis e problemas insondáveis. No entanto, se o homem não se fizer cada vez mais responsável por suas ações, tanto individual quanto coletivamente, parece improvável que algum poder ou ser superior assuma esta tarefa e lhe carregue o fardo. Além disso, este parece ser um momento propício da História ao obscurecimento da questão da responsabilidade do homem por suas ações, escondendo-se por trás de uma concepção forjada de doença mental.
VII
Tenho tentado demonstrar que a noção de doença mental tem sobrevivido a qualquer utilidade que possa ter tido e que agora funciona como um mito. Como tal, é herdeira legítima dos mitos religiosos em geral e em particular da crença em feitiçaria. A função desses sistemas de crenças era de agir como tranquilizadores sociais, alimentando a esperança de que o domínio de certos problemas poderia ser adquirido por meio de operações substitutivas simbólico-mágicas. O conceito de doença mental, assim, serve principalmente para obscurecer o fato cotidiano de que a vida, para a maioria das pessoas, é uma luta contínua, não pela sobrevivência biológica, mas por um “lugar ao sol”, “paz de espírito”, ou algum outro significado ou valor. Uma vez satisfeita as necessidades de preservação do corpo, e talvez da raça, o homem se confronta com o problema do significado pessoal: o que deveria fazer de si mesmo? Por que deveria viver? A adesão ao mito da doença mental permite às pessoas evitar confrontar-se com este problema, acreditando que a saúde mental, concebida como a ausência de doença mental, automaticamente assegura a escolha certa e segura na condução da vida. Mas os fatos são contrários a isto. Na vida, são as escolhas sensatas que as pessoas consideram, retrospectivamente, como evidência de saúde mental.
Quando afirmo que a doença mental é um mito, não quero dizer que a infelicidade pessoal e o comportamento socialmente desviado não existam; o que estou dizendo é que os categorizamos como doenças por nossa própria conta e risco.
A expressão “doença mental” é uma metáfora que erradamente consideramos como fato. Chamamos as pessoas de doentes fisicamente quando o funcionamento de seu corpo viola certas normas anatômicas e fisiológicas; de forma análoga, chamamos de mentalmente insanas as pessoas cuja conduta pessoal viola certas normas éticas, políticas e sociais. Isso explica porque muitas figuras históricas, de Jesus a Castro, e de Jó a Hitler, têm sido diagnosticadas como sofrendo desta ou daquela doença psiquiátrica.
Finalmente, o mito da doença mental nos encoraja a acreditar em seu corolário lógico: que a interação social seria harmoniosa, satisfatória e a base segura para uma vida saudável, não fosse pelas influências desagregadoras da doença mental ou Psicopatologia. Contudo, a felicidade humana universal, pelo menos nessa forma, não é senão um outro exemplo de desejos utópicos. Creio na possibilidade da felicidade humana, ou do bem-estar – não somente para uns poucos, mas numa escala anteriormente inimaginável. Contudo, isso pode ser atingido somente se muitos homens, não só uns poucos, estiverem desejosos e forem capazes de confrontar francamente e atacar com coragem seus conflitos éticos, pessoais e sociais. Isso significa ter a coragem e integridade de renunciar a batalhas empreendidas em frentes falsas, à procura de soluções para problemas substitutivos – por exemplo, lutar na batalha contra a acidez estomacal e fadiga crônica, em vez de enfrentar um conflito conjugal.
Nossos adversários não são demônios, feiticeiras, o destino ou a doença mental. Não temos inimigos contra os quais possamos lutar exorcizar, ou dissipar pela “cura”. O que temos, sim, são problemas existenciais – que podem ser biológicos, econômicos, políticos, ou sócio-psicológicos. Neste ensaio detive-me somente nos problemas pertinentes à última categoria apresentada, e dentro deste grupo, com ênfase naqueles pertinentes valores morais. O campo abrangido pela Psiquiatria moderna é vasto e não fiz esforço para abrangê-lo todo. Meu argumento limitou-se à proposição de que a doença mental é um mito cuja função é disfarçar, e assim tornar mais aceitável, a amarga pílula dos conflitos morais nas relações humanas.
[i] Sífilis ou paralisia cerebral. Uma das formas de neurossífilis com envolvimento de córtex cerebral. Sintomatologia: decréscimo na capacidade de concentração, perda de memória, irritabilidade. Surpreendente mudança de comportamento: a pessoa torna-se irresponsável, confusa e psicótica.
[ii] Ver T. S. Szasz: Pain and Pleasure: A Study of Bodily Peelings, (Nova York: Basic Books, 1957), especialmente pp. 70-81; “O problema da nosologia psiquiátrica”. Amer. J. Psychiatry, 114:405-13 (novembro), 1957. (Publicado no Brasil por Zahar Editores sob o título Dor e Prazer: Um Estudo das Sensações Corpóreas; Rio, 1976.).
[iii] Ver T. S. Szasz: The Ethics of Psychoanalysis: The Theory and Method of Autonomous Psychotherapy, (Nova York: Basic Books, 1965). (Publicado no Brasil por Zahar Editores sob o título A Ética da Psicanálise; Rio, 1975.)
[iv] Ver T. S. Szasz: Law, Liberty, and Psychiatry: An Inquiry into the Social Uses of Mental Health Practices, (Nova York: Macmillan, 1963).
[v] R. S. Peters: The Concept of Motivation, (London: Routledge & K un Paul, 1958), especialmente pp. 12-15.
[vi] A. B. Hollingshead e F. C. Redlich: Social Class and Mental Illness, (Nova York: Wiley, 1958).
[vii] I consider ethics to be taken for granted. Actually I have never done a mean thing. (N. do T.)
[viii] Citado em E. Jones: The Life and Work of Sigmund Freud (Nova York: Basic Books, 1957), vol. III, p. 247. Zahar Editores, Vida e Obra de Sigmund Freud.
Tradução de José Sanz. Revisão atualizada de Adriel Santana.
http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2016/08/25/interna_cidadesdf,545790/artesao-vai-a-juri-popular-por-matar-estrangeira-em-ritual-de-magia.shtml
ResponderExcluirhttp://veja.abril.com.br/brasil/dica-de-eduardo-paes-a-uma-cidada-do-rio-faz-muito-sexo/
ResponderExcluirhttp://veja.abril.com.br/entretenimento/jady-duarte-sobre-a-noite-com-usain-bolt-me-fiz-de-dificil/
ResponderExcluirUm gran finale...
ResponderExcluirhttps://br.vida-estilo.yahoo.com/mulher-com-doen%C3%A7a-terminal-d%C3%A1-135518435/photo-reprodu%C3%A7%C3%A3o-1472134082980.html
Ézio, maravilhoso o teu artigo "Algumas considerações sobre a saúde mental dos funcionários públicos". Já o li e não me canso de reler. Creio que essa geração louca para ser funcionário público não imagina o que lhe espera...Todos deviam ler esse brilhante artigo.
ResponderExcluirRogério
http://www.scielo.br/pdf/pcp/v17n1/07.pdf
ResponderExcluirhttp://veja.abril.com.br/politica/dilma-recebeu-collor-em-conversa-reservada/
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