Para ouvir a música, de um click na ponta esquerda da faixa
Ontem, sexta-feira, ainda em jejum, encontrei o mendigo K., num dos três laboratórios que monopolizam os exames de sangue da cidade. Estava numa fileira de cadeiras ao lado de outros velhinhos, todos com gestos meio paranóides, uma senha preferencial na trêmula mão esquerda e na direita, ou as bengalas ou as requisições de seus respectivos médicos. Sentei-me na fileira de trás e o ouvi falando (com arrogância e revolta) para alguém, da mesma idade que ele. Deduzi que era seu conhecido de longa data, um velhinho feito quase só ossos e que parecia estar prestes a partir para outro mundo: No passado - dizia - nós nos encontrávamos na madrugada; no Casino Acarai; na porta dos puteiros de Phucket; nos desativados alambiques de cachaça em Pirapora; nos velhos barcos às margens do Rio São Francisco; em tiroteios da periferia; no vale do rio Urubanda, subindo para o topo de Machu Picchu; tomando sopa de batatas ao lado do Lago de Titicaca; num teco-teco aos pedaços sobrevoando o Himalaia e o pântano tibetano; entre os sherpas, nas escadarias para o templo de swayambhunath, em Katmandu; na Livraria Ghandi, na Ciudad de Mejico; nas cachoeiras de Pirinópolis; nos porões da casa de Cora Coralina; nas cavernas de Bom Jesus da Lapa; nas universidades; nos congressos internacionais; nas greves; nas manifestações; nos corredores dos ministérios e nos salões da república... e, de vez em quando, aqui entre nós, até nos pátios improvisados da ditadura militar argentina... Mas hoje, veja que desgraça, só nos encontramos em lugares ccomo este, nas filas de hospitais, na jogatina de dominó com os taxistas
Curiosamente, levava sob o braço um dos mais fascinantes livros que já li: Psicoterapia do oprimido.
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