Como esta é a primeira vez que participo de um evento desse gênero achei prudente passar discretamente pela livraria umas duas ou três horas antes. Se houvesse um patíbulo montado na entrada - por exemplo - deixaria o Glauco e o Pietroforte chegarem antes. Mas tudo estava tranqüilo e sereno.
Fiquei indo e vindo pela Alameda Lorena no mesmo ritmo daquelas desoladas velhinhas, com seus cachorros.
-Quanto deve custar um apartamento por estes lados? Perguntei ao homem de terno azul marinho que fica ali na esquina da Padre João Manoel. Ele olhou-me com uma mistura de piedade e de compaixão e não respondeu.
Entrei no Café Suplicy. Guapequinhas simpáticos continuam passeando e defecando aqui e acolá sobre as pedras portuguesas, enquanto suas babas divagam.
Na vitrine da Roberto Simões um faqueiro com cabo de osso. Pensei que fosse marfim. Entrei. A dona loira conduziu-me a uma vendedora morena que informou o preço: 300 Euros.
-É osso de quê senhorita? – Perguntei.
Ela ficou atônita. Ia perguntar à patroa mas eu lhe poupei dessa indiscrição. A Sapataria do Futuro ao lado da Vie en Rose. Confundi o prédio preto da TNG com alguma coisa relacionada a TNT. A mulher tatuada da esquina queima incenso indiano à minha passagem. Diz que a fumaça e o aroma do Opium indiano favorece a fortuna, o amor e a paz. Made in Índia – insistiu. Associei de cara com os crematórios de Benares.
O Bazar de Aviamentos exibia um cesto repleto de calcinhas sobre o balcão. A vendedora surpreendeu-me com os olhos cravados naquelas peças e ficou inquieta como se tivesse deduzido estar diante de um xotólatra. Nas imediações da vitrine da Banana Price, 14 pares de botas pretas, salto alto, cano longo e com fivelas. Impossível não lembrar de Sade.
Encostei-me num poste frente a Nuit de la Passion e fiquei olhando a livraria de longe. Voltaria à noite ou tomaria um ônibus para Aparecida do Norte?
Se pelo menos recebesse um fax dizendo que Brasília está em chamas, que meu prédio ruiu e que a turba pisoteia meus livros...
As três palavras impressas no convite deste evento me angustiam: Transgressão, interdição e literatura.
Aqui entre nós: não é possível transgredir nada! O que comumente se rotula de Transgressão é apenas Regressão. Eu próprio sou um exemplo disso. Apesar das ficções que tecem a meu respeito, freqüentemente sou visto por minha companheira como um banana. As velhinhas da rua por pouco não me param para pedir uma benção, identificam em meus olhos e em meus trejeitos a alma de um rabino ou a personalidade de um padre. A propósito, não é por acaso que nós três, o Glauco, o Pietroforte e eu somos descendentes de italianos. Nascemos e crescemos naquele ambiente soturno e cheio de ícones repressivos. Nossa suposta transgressão é apenas um esperneamento sem fim e sem remédio.
Quanto à literatura, depois da Bíblia e de Paulo Coelho não se tem mais nada a fazer e nem a dizer sobre o assunto. Ele e a Bíblia sozinhos colocaram todos os pretensos escritores no chinelo.
Sobre interdição, apesar dos pastores da sociologia e da psicologia, apenas uma interdição social e cultural merece nossa atenção: a interdição do suicídio.
Um motoqueiro quase me atropela enquanto olhava para os 22 andares do Edifício branco que fica no número 1886 da Bela Cintra. Gostaria imensamente de morar num daqueles apartamentos com varandas de cemitério. Aproximei-me para saber se algum estava sendo vendido e descobri que se chama bizarramente Edifício Tucuna. O porteiro cordial informou-me que há sim um no primeiro andar. Preço: Um milhão e duzentos.
Se morasse no Edifício Tucuna poderia ir todos os dias à Trattoria Lellis que fica bem em frente e logo logo estaria gordo como um porco.
Fui subindo a Bela Cintra e passei por debaixo de uma faixa que dizia: FALE FRANCÊS, VIVA ESSA EMOÇÃO, para em seguida lembrar que 2009 é o ano da França no Brasil. Há uns anos atrás foi o ano do Brasil na França. Se vocês soubessem quantos crápulas ficaram ricos com aquele evento, não estariam aí tão serenos.
Já lá na Paulista, frente ao Banco de la Nación Argentina, três repórteres apontaram-me as câmeras querendo saber minha opinião sobre Os Direitos dos Consumidores. Neguei-me dizendo que era um turista tcheco.
Cansado, entrei na igreja da Paróquia São Luis Gonzaga, aquela que fica em frente ao Hotel Íbis. Logo de cara uma surpresa: ao lado de um pôster do Cristo ensangüentado um convite para a festa árabe beneficiente.
Silêncio sepulcral. Tirei o tênis e vi-me novamente tomado pela lembrança da tara do velho podólatra. Às minhas costas o cofre para doações, dízimos, ofertas etc., com um cadeado devidamente lacrado.
O mendigo que repousava num daqueles bancos estofados resmungou-me que se visse o padre iria pedir uma confissão, uma comunhão e até mesmo a extrema-unção.
Subi ao último andar de meu hotel achando que de lá poderia vislumbrar as lápides do Cemitério da Consoloção. O mausoléu imenso do Conde Matarazzo - por exemplo - ou o singelo do Monteiro Lobato.
Um dia ainda confessarei ao editor de meus livros que eu, com o maior prazer escreveria somente para os mortos.
São Paulo, 18 de abril de 2009 - 16:00 horas.
Ezio Flavio Bazzo
ah, quantos mortos já são leitores ávidos por novidades? ávidos pela leitura de todos os livros indicados pela lista dos mais vendidos da revista veja! retroalimentação! mortos que ou estão para proteger ou para proporcionar vida longa à nike, ao mac'donalds, à gap, ao grupo pão de açúcar, à petrobras... quantos sacerdotes, com um único rosário combatem? quantas velhinhas pediriam a benção a ivan sergeyevich turgenev e a john zerzan? ezio, seus textos não são literatura, são sim esquemas elaborados como aqueles para se apostar em corrida de cavalo. portanto, façamos nossas apostas.
ResponderExcluir