“O efeito, mais embaraçoso do que desagradável, é algo como presenciar a revelação acidental da nudez de um homem idoso. Você não quer olhar novamente, mas sabe que não conseguirá se esquecer. Este disco é uma mancha indelével que irá pairar para sempre sobre a voz do século.”
É com esta referência a Pavaroti, que Norman Lebrecht conclui a parte de seu recente livro dedicada às 20 gravações que nunca deveriam ter sido feitas.
Publicado na Inglaterra em 2007 e lançado no Brasil recentemente, Maestros, obras primas e loucuras é um livro que, apesar de em alguns aspectos parecer-se a um prontuário é uma preciosidade, não apenas para os iniciados, os veteranos ou os profissionais da música, mas para qualquer um, amador ou leigo que queira inteirar-se ou tomar conhecimento dos conflitos, das disputas, vaidades e das guerras interpessoais que ilustraram o universo musical clássico, principalmente, nas primeiras décadas do período revolucionário que representou o surgimento da indústria fonográfica no ocidente.
Dividido em três partes: I. Maestros; II. 100 obras primas da gravação e III. 20 gravações que nunca deveriam ter sido feitas, numa linguagem simpática e atraente o autor nos proporciona além de detalhes da trajetória do mundo profissional e íntimo dos grandes músicos a história do início, do auge e da decadência da indústria fonográfica da música clássica. A ópera, o concerto, a sinfonia que até então só podiam ser apreciadas ao vivo e em ambientes quase sacros, agora, através de uma pequena engenhoca podiam ser congeladas numa fita magnética, reproduzidas profanamente aos milhares e serem vendidas como outra mercadoria qualquer, não apenas nos guetos cultos e refinados da época, mas em qualquer feira popular do planeta e em qualquer confraria underground.
Alguns anos antes da invenção do gravador era quase impossível imaginar que tanto a sofisticação da música clássica como o rigor germânico do velho Karajan – por exemplo - chegassem a extrapolar as abobadas granfinas e luxuosas das óperas para ganharem as ruas e povoarem o mundo da plebe. Ver Beethoven, Bach e Schubert serem negociados e ouvidos nos mercados, nas salas dos dentistas, nos carros, nos elevadores, nas ferroviárias, nos saguões dos aeroportos e até mesmo nos radiozinhos dos mendigos parecia a maior de todas as profanações.
Foi em 1877 que aconteceu a primeira gravação de sons. O próprio Thomas A. Edison inaugurou o instrumento inventado por ele cantarolando Mary had a little lamb e claro, com o grande Caruso berrando suas Árias. Porém, só lá por 1920 – como lembra o autor – é que “nasceu a gravação como ato musical separado e distinto da execução ao vivo”.
Se para alguns a novidade era o máximo, uma via através da qual a precisão e a velocidade poderiam transcender a inspiração como objeto da execução, para outros, mais cautelosos, “o ato de gravar ia contra a própria natureza da execução musical”. Mas tudo foi superado e atropelado pela voracidade da indústria e do progresso. A perda do espetáculo único e ao vivo de uma audição foi compensada pela possibilidade de eternizar um concerto, de aperfeiçoar uma execução, regravar, comparar e de fazer durar aquele momento para sempre. Sem falar, evidentemente, dos lucrativos negócios que a inovação representava.
Autor de uma dezena de livros sobre música, entre eles O mito do maestro, Norman vai tecendo ao longo do livro, com rigor, mas também com certa ironia a rede de negócios, intrigas, disputas, neuroses, decepções, falências, invejas, fortunas e colapsos que marcaram as primeiras décadas pós-gravador. O livro permite que o leitor tenha uma visão pouco conhecida de como funcionou a indústria e o comércio fonográfico naquele momento histórico, com seus exageros, “golpes baixos” e manipulações, tanto dos músicos e compositores como do próprio público consumidor.
Aqueles que se interessam pelo nexo e pela relação que sempre houve e que sempre haverá entre o Ser, a arte e a loucura, entre a máscara usada para fascinar o público e a máscara usada na intimidade, entre aquilo que ocorre secretamente nos bastidores da vida de cada um e o show que se encena para a platéia gostarão imensamente desta leitura. Mesmo com uma leitura apressada das mais de trezentas páginas desse livro, impossível não dar uma atenção especial às notícias e às histórias sinistras ocorridas nos camarins e nos bastidores da existência desses gênios da música clássica. Histórias e tragédias que além de nos colocarem novamente frente à dolorosa condição humana, nos fazem refletir e até ressignificar conceitos, idealizações e mal-entendidos que, normalmente conservamos a respeito dos músicos e dos artistas, bem como do mundo erudito e mítico da musicalidade e de seus atores. Vamos aos fatos:
− Enrico Caruso morreu aos 48 anos de pleurisia, enquanto estudava o papel de Eleazar na ópera La juífe, de Halevy;
− Toscanini teve um lapso de memória em 1954, enquanto regia a abertura da Tannhauser, de Wagner. Abandonou a batuta e morreu três anos depois;
− David Munrow - fagotista do Teatro Real Shakespeare - suicidou-se em maio de 1976, aos 33 anos, no meio de uma atormentada vida amorosa.
− Klaus Tennstedt, após o sucesso de sua apresentação da Oitava Sinfonia de Bruckner, “desajeitado, vacilante e inclinado ao consolo etílico desfez-se em lágrimas durante um ensaio e teve um colapso nervoso pouco tempo depois”;
− Karajan, que apesar de sua genialidade não era muito bem visto no meio, por seus antecedentes próximos ao nazismo, ao saber que Emil Jucker tivera um acidente vascular cerebral durante uma de suas apresentações, comentou: “as pessoas que se colocam contra mim sempre se dão mal”;
− Mais tarde, Herbert Von Karajan enquanto dirigia o segundo ato de uma récita de Don Giovanni sofreu um infarto e saiu carregado em uma maca. Dois anos depois de sua morte, Ohga outro chefão do mundo das gravadoras foi submetido a uma cirurgia cardíaca;
− Edward Lewis, um dos poderosos da gravadora Decca, quando viu sua empresa despedaçar-se, morreu de leucemia. “como se fosse incapaz de continuar acompanhando a liquidação pedaço a pedaço de sua querida empresa”;
− O húngaro Bartók também sofria de leucemia;
− A Tosca foi o último papel que a grega Callas cantou no palco, antes de se aposentar, em 1965, ferida no orgulho e no coração, quando o armador grego Onassis a deixou para casar-se com Jacqueline Kennedy;
− Kleiber, magoado e deprimido depois que intrigas vienenses o colocaram no rol de solistas de qualidade inferior, abandonou a regência e foi encontrado morto na banheira de um hotel na Suíça;
− Solomon Cutner, com 51 anos, sofreu uma hemorragia cerebral após uma gravação e nunca mais voltou ao piano;
As crises de depressão de Rachmaninov, assim como a esquizofrenia e os colapsos nervosos de Horowitz eram conhecidas por todos;
− O pianista romeno Dinu Lipatti morreu aos 33 anos de idade, vítima de leucemia;
− Gustav Mahler morreu atormentado e na miséria em Londres. Sua famosa Canção da Terra foi um trabalho motivado pela morte de uma filha ainda bebê e pela perda de seu posto em Viena.
− Jussi Bjorling, conhecido como o “Caruso sueco”, sofreu um ataque cardíaco no palco do Covent Garden.
− Fritz Wunderlich, um dos solistas da Canção da Terra, dois meses após a gravação teve um acidente doméstico fatal com uma arma de fogo;
− David Munrow, especialista em música de Florença e pesquisador de música medieval, suicidou-se em 1976, com apenas 33 anos;
− Charles-Valentin Morhange, conhecido como Alkan, depois de confinar-se em seu apartamento em Paris por vinte anos foi encontrado morto sob uma estante de livros. Dizem que o acidente ocorreu quando tentava retirar o Talmude da prateleira;
− Alban Berg morreu de infecção generalizada em dezembro de 1935, aos 50 anos, deixando sua segunda ópera inacabada;
− Hensler teve um infarto e aposentou-se prematuramente;
− Morita sofreu uma hemorragia cerebral;
− Sinopoli, diretor musical da Ópera Alemã de Berlin caiu morto no meio de uma encenação da Aída, aos 54 anos de idade;
− O maestro Abrado teve um câncer no estômago;
− Nobuyuki Idei, chefe da produção da Sony, teve um colapso nervoso e assistiu à apresentação deitado numa cama de hospital;
− Glenn Gould, ao completar 50 anos teve um acidente vascular cerebral fatal e o piano perdeu uma de suas maiores lendas;
− Enquanto as drogas iam para o Rock a garrafa tornou-se a companheira dos clássicos. Vários executivos foram enviados para centros de recuperação. Um produtor da DG suicidou-se numa clínica da floresta negra;
− O maestro Klaus Tennstedt, após uma explosiva estréia em Boston – interpretando Mahler, respondeu com um colapso nervoso. O câncer na garganta e a insegurança levaram sua arte a um final balbuciante e trágico;
− O regente Georg Tintner, jogou-se de uma sacada aos 82 anos;
− Em 13 de 11 de 1993, no intervalo de um recital público dos Prelúdios e Fugas em São Francisco, Nikolayeva teve um colapso no camarim e morreu. Etecetera.
Apesar de o autor parecer sarcástico em alguns momentos no detalhamento de todo esse rosário de desgraças e de convulsões que marcaram a existência desses homens, a obra é um relato fundamental tanto para o mundo da música como para o universo da psicopatologia. Um daqueles textos cada vez mais raros que nos proporcionam saber e prazer ao mesmo tempo.
Ezio Flavio Bazzo