...Faço propositalmente uma salada de cidades, países, continentes, viagens, oceanos, acontecimentos, registros, interpretações, confissões e memórias neste livro, muito mais para confundir do que para orientar, cabe a você leitor, acostumar-se ou não a essa desordem e a essa errância. Aqui tanto as viseiras como as poses de sapiência são plenamente dispensáveis, já que o elogio ou a crítica são igualmente abomináveis. É bom frisar que longe da pretensão de equilibrar ou de apaziguar as hordas, os sujeitos pecantes ou os espíritos endemoniados, meus escritos costumam agravar o mal ou – como dizem os iniciados no zen – levá-lo ao ponto mais agudo e insuportável, lá onde o sujeito se enraivece e toma consciência de que marcha irremediavelmente para o matadouro. E isto, não porque ache bonita ou romântica a ideia do caos, da melancolização, da ferocidade implacável, do abismo e do naufrágio, mas porque é o que tenho de mais genuíno, crônico e pessoal a oferecer.
Já é quase madrugada em Londres. Alguns idiotas bêbados atravessam a rua resmungando e vão em direção às cercas do Hyde Park. Pela janela deste quartinho de merda vejo o quiosque do indiano com as luzes acesas, mas fechado. Foi esse filho-de-uma-puta que, hoje a tarde, quis cobrar-me uma libra por uma mísera colher de plástico. De quando em quando o gemido de alguns pássaros como se estivessem sendo mordidos por uma ratazana ou mesmo se enrabando. Mas a essa hora? A árvore da frente balança levemente seus galhos como se nela estivesse empoleirado um bando de druidas endemoniados. O que há de melhor na insônia – ironizava Cioran – é que ela nos permite mergulhar de vez no território do silêncio. Rumino minhas sementes de girassol. Jogado no piso o jornal de ontem com uma manchete sobre a morte do Bin Laden. Meteram-lhe uma bala no meio da testa. Entre o atirador e o morto, quem era mais Caim? Como dizia, apesar de trotear todos os dias, de manhã à noite entre o rebanho prostrado e de língua para fora, costumo frisar para mim mesmo esta frase de W. Whitman: “Não tenho cátedra, nem igreja, nem filosofia. Não arrasto ninguém a uma mesa posta, nem à biblioteca e nem à bolsa”. Apesar de minha pose de normalidade albergo no mais abismal de meu ser um vulcão de exagerada envergadura. Mas, como por defesa, “não estou nem aí” para os pecados e para os crimes hediondos da humanidade, sejam eles perdoáveis ou imperdoáveis. Não penso com a lógica dos sindicatos, dos partidos, das confrarias ou dos velhos conventos. Mesmo não simpatizando com Machado de Assis na mesma magnitude de meus contemporâneos, tenho sempre presente o texto que ele colocou na boca de Brás Cubas, capítulo VI: “Ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim”. Esse mesmo autor voltará a falar de Caim em seu Alienígena, capítulo C, item 18: “Mas a iniquidade de Caim falou nele, e me feriu a cabeça, a cara e as mãos”. Iniquidade e ruindade de Cain? É uma indecência que Machado de Assis, porra-louca e filho legítimo do lupemproletariado como tantos outros, fale mal de Caim, que tenha, talvez por ter ido demais às missas da Candelária, comido a isca e os chavões de nossa delirante cultura. O escritor que não explicita com todas as letras seu engajamento à causa cainesca – irreverente, maldito, herói negativo – não é confiável, é quase um traidor, um traidor que reforça a tese de que a verdade de um texto é aquilo que se perde na tradução. Mas é compreensível. Ah, Abel mártir! Sim, é compreensível! A cachaça, os transtornos psicológicos, a época e o tempo têm também a nefasta função de despistamento, já que nosso saber é quase sempre uma torre de isopor erigida sobre as ruínas de uma singela choupana de lama. E aqui entre nós, quem é que está interessado em dar uma de Hércules, atravessar o umbral do caos e iniciar o desmoronamento de toda essa merda civilizatória, sabendo que até os pedregulhos do subsolo estão contaminados por essa idiotia generalizada e que desconstruir é sinônimo de dinamitar??? (pp.39,40)
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