... Caim de mochila pelas estradas do mundo! Caim metáfora do odioso e do malefício absoluto. Caim corvo extraviado! Caim solitário no meio fio dos estacionamentos tentando exorcizar seu luto e sua melancolia, camaleão desgraçado exposto ao sol e a todo tipo de possibilidades de autoextermínio. E para que ninguém o pudesse matar, pois a morte viria colocar um fim ao seu castigo de vagar continuamente e sem descanso por sobre a terra, o Demiurgo, num refinamento de sadismo colocou dois pontiagudos chifres em sua fronte fratricida. E foram esses mesmos chifres, que bem mais tarde, movendo-se entre as folhagens, permitiram a Lamech, seu bisneto, que o confundiu com um animal, disparar uma certeira flecha em direção a seu pescoço. Enquanto o sangue do bisavô assassino jorrava, o atirador recitava, amargurado, a frase que Kant surrupiou dos orientais: às vezes o mal é bem e às vezes o bem é mal. (p. 77) (...) Todos os dias que circulo lá pelos lados da Liverpool Street Station me deparo com uma mulher de beleza especial enrolada em trapos e que dialoga consigo mesma. Abotoa e desabotoa os farrapos, lança para os lados olhares de melancolia como se estivesse se perguntando: onde está a consciência negadora dessa gente? Depois senta-se numa pequena mureta de um edifício e fica lá, com as mãos postas como uma intrépida santa da antiguidade. Ela sempre me lembra que foi aqui nesta cidade que Cooper e Laing tentaram olhar a loucura por outro ângulo e com outro prisma, mas que tudo acabou virando poesia e um mosáico de nulidades.. Contra a usina monstruosa que gera o desvario parece que todas as contrainformações são idílicas e inócuas. E depois, se a loucura é a maneira como a pessoa tenta resolver seu conflito com o mundo e consigo mesma, “curá-la” e mandá-la de volta para a "normalidade" não seria a mais abjeta das crueldades??? (p.88) (...) Caim sátiro e anjo caído com superpoderes, herói do submundo, do crime e da desobediência civil! Caim prefeito de todos os cortiços, o rei das putas, dos bêbados, dos traficantes, dos excomungados, dos expatriados, dos divorciados, dos Don Juans... Caim na trilha de Jack, o Estripador! Caim ideólogo da pedofilia! Caim todos os Papas! Caim mestre secreto de Bodhidharma, inventor do Koan e do Zen. Caim cafetão, anticristo, antítese de Gandhi, inimigo mortal dos bispos, inspirador de gangues, fabricante de êxtase e de crack... Caim violinista e muito mais transgressor que Prometeu, aquele Titã grego que roubou o fogo divino e o traficou no cambio negro. Caim editor do Malleus Meleficarum, chefão da família dos Rotshilds e o adestrador de todos os cães do mundo!!! Ele que foi castigado com a imortalidade e mais, com a tortura de uma hiena que lhe devorava diariamente as visceras, é o mesmo Caim que desmata a Amazônia e que contamina os rios no meio da selva, o mentor do menino de oito anos que numa pequena vila do Pará matou outra criança de três anos com uma porretada na cabeça.
-Que fizeste com teu amiguinho Kauã – interroga o delegado de polícia.
-“Dei uma paulada na cabeça. Ele caiu e nem chorou. Fui em casa buscar uma faca e cortei a cabeça dele”.
Cain inspirador também daquele homem de 64 anos que mantinha seu neto, de dois, amarrado com uma corda ao pescoço num canil, ao lado de três pit bulls.
-Por que fizeste uma barbaridade destas com teu neto – interroga a polícia.
-Porque sou doente, a mãe dele é lelé da cuca e seu pai morreu numa troca de tiros... Respondeu o velho avô… (p.111)